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26� MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SP
"MADAME SATÃ"
Karim Aïnouz dirige filme sobre lendário travesti
Produção encena luta do desejo contra a opressão
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
O contraventor João
Francisco dos Santos, o Madame Satã (1900-76), é uma figura
mítica do submundo carioca.
Ao escolhê-lo como tema de seu
primeiro longa, o diretor cearense
Karim Aïnouz mostrou ousadia,
até porque já havia sido feito, nos
anos 70, um bom filme inspirado
no personagem: "Rainha Diaba",
de Antonio Carlos Fontoura.
Mas, se Fontoura via o Satã, por
assim dizer, "de fora para dentro", o novo filme faz o oposto.
Em vez de buscar compor um painel social, Ainouz centra o foco
em seu personagem.
É como se as contradições e potencialidades da sociedade brasileira passassem todas pelo corpo e
pelo espírito de Madame Satã.
Preto, pobre, analfabeto, homossexual, o Satã do filme de Aïnouz é uma espécie de excluído
absoluto, que, entretanto, se rebela contra essa exclusão.
É "um negro que não sabe o seu
lugar", ou melhor, que não cabe
nele. Toda a tremenda força do
filme vem dessa tensão, desse ímpeto para romper limites.
É quase uma tradução audiovisual do célebre poema de Brecht
sobre a violência, que diz mais ou
menos o seguinte: "Do rio que
transborda, arrasta árvores e destrói casas, diz-se que é violento.
Mas não se fala da violência das
margens que o comprimem".
O admirável em "Madame Satã" é que todos os valores estéticos
do filme se integram organicamente de modo a potencializar e
reverberar esse motivo central.
Ao se restringir ao ano de 1932,
momento imediatamente anterior ao salto existencial que transmuta João Francisco em Madame
Satã, o roteiro capta de certo modo a plenitude do personagem, a
densidade máxima de seu signo.
A narrativa avança por meio de
situações de opressão e explosão
-tanto no plano da violência como no do erotismo.
Seduzido por um rapaz bonito,
Satã se refreia ao máximo antes de
dar vazão ao desejo. Humilhado
pela cantora de cabaré para a qual
trabalha de camareiro (Renata
Sorrah), acumula ódio até o desabafo ser inevitável.
A escolha do ator foi muito feliz:
o jovem baiano Lázaro Ramos
traduz em gestos precisos e em
sutis modulações de voz os extremos anímicos do personagem, da
doçura à brutalidade.
Os coadjuvantes -Marcélia
Cartaxo como uma prostituta,
Flávio Bauraqui como um homossexual afeminado e passivo
(o contrário do Satã)- também
estão excelentes.
As canções -em geral sambas
antigos, como o extraordinário
"Se Você Jurar", de Sinhô- e os
delirantes textos poético-dramáticos declamados por João Francisco em seus espetáculos de cabaré dão conta de certa vocação
sincrética e antropofágica da cultura afro-brasileira.
Mas é no terreno propriamente
cinematográfico que o filme se
impõe de modo mais notável.
A par da ambientação predominantemente noturna e das cores
"estouradas", que configuram
um espaço pulsante, os enquadramentos -em geral fechados, não
raro deixando fora do quadro
partes do corpo do protagonista- concorrem para a idéia da
desmesura, do "não caber".
Há toda uma política e toda
uma moral embutidas nessa estética. Contra o perverso mecanismo da história, contra a arquitetura injusta do mundo, o indivíduo se insurge com seu corpo e
(na falta de nome melhor) com
sua alma. Um grande filme.
Madame Satã
Direção: Karim Aïnouz
Com: Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo
Quando: amanhã, às 22h40, no
Unibanco Arteplex 2; dia 24, às 22h15, no
Espaço Unibanco 1; dia 29, às 17h10, no
Cinesesc
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