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O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO
Fã de Machado de Assis, o autor Philip Roth fala sobre seus livros, os EUA e novos planos
"Bush está lutando para enterrar os anos 60"
DE NOVA YORK
Leia a seguir a entrevista que o
escritor norte-americano Philip
Roth deu à Folha, na semana passada, a pretexto do lançamento de
"Casei com um Comunista" no
Brasil pela Cia. das Letras.
(SÉRGIO DÁVILA)
Folha - Após se separarem, sua
ex-mulher, a atriz Claire Bloom, escreveu um livro de memórias em
que pinta um retrato pouco lisonjeiro do senhor. O jornal "The New
York Times" chegou a especular se
"Casei com um Comunista", em
que a mulher do personagem principal o entrega aos inquisidores do
macarthismo, não seria uma resposta velada sua. É?
Philip Roth - Você não deve acreditar em tudo o que lê no "The
New York Times" (risos). Na verdade, isso é irrelevante. Nos anos
50, eu era um estudante de faculdade, um quase-adulto consciente que pendia para o lado da esquerda. Isso não era tão incomum
como se pode pensar hoje em dia.
Não cheguei a ser atingido diretamente pelo macarthismo, embora
tenha formado minha opinião naquela época.
Agora, acabou a esquerda na
América (empolgado). Só temos
direita e centro, que são os democratas (acalmando-se). Minha família era de pessoas comuns, mas
de esquerda, como a maioria dos
trabalhadores então. Descobri depois que tinha até tios que eram
secretamente membros do Partido Comunista. Como um observador atento, não pude deixar de
escrever sobre tudo aquilo depois.
Folha - Por que a linha entre ficção e autobiografia é sempre tão
tênue em sua obra?
Roth - Tudo o que eu escrevo
passa antes pelo filtro de minha
imaginação, mesmo que tenha
acontecido comigo de verdade
antes. Então considero tudo ficção. Mas há uma divisão formal
entre meus livros que são baseados em fatos reais e os que são
simplesmente criados.
Folha - Mas mesmo aí a fronteira
é muito sutil.
Roth - Sim, assim como a fronteira entre o México e o Texas.
Você pode ultrapassá-la facilmente, mas também pode acabar
levando um tiro...
Folha - Em "Pastoral Americana",
o sr. parece dar uma dimensão quase fundamental à Guerra do Vietnã
e aos anos 60 para a formação dos
Estados Unidos atuais. Foi mesmo
assim?
Roth - Foi uma tragédia, terrível
para o país e o mundo. A América
mudou tremendamente, mas não
só por causa da guerra. Os EUA
mudaram porque sofreram muita
influência de uma década inteira.
Os anos 60 começam de verdade
em 1963, com o assassinato de
John Kennedy, e terminam em
1974, com o fim da Guerra do
Vietnã.
Foi nessa década que tudo aconteceu, tudo parecia novo, e o país
foi completamente alterado depois desse período. Teria de ficar
seis horas dizendo o que mudou
depois disso, mas, para caber numa resposta de entrevista, digo
que tudo mudou aí -a relação
dos EUA com o resto do mundo, a
relação dos americanos com as
americanas, o começo de verdade
da revolução sexual.
Afetou os velhos costumes e começou uma revolução que continua valendo. Os hábitos sexuais
de hoje em dia lembram muito
vagamente os da América em que
nasci e cresci, por causa dos anos
60.
Tanto que a agenda do Partido
Republicano desde então foi combater os anos 60. E eles continuam
combatendo os anos 60. E vão
continuar pelos próximos 30
anos. Isso definiu a agenda do
partido, essa é a vida deles. Se você pensar bem, George W. Bush
está lutando na verdade para ser
eleito e enterrar os anos 60.
Folha - Talvez não seja uma coincidência que sua trilogia acabe no
mesmo ano em que termina a era
Clinton.
Roth - A sorte é minha (risos).
Estou brincando. Se Bill Clinton
concorresse de novo neste ano,
ele ganharia de novo. Por uma
margem ainda maior do que na
última vez, apesar de tudo o que
as pessoas pensam sobre ele.
Folha - Mas o fato é que ele não
está concorrendo, e sim Al Gore. O
que o sr. acha que vem por aí, tanto
nos EUA como em seus próximos livros?
Roth - Antes de tudo, espero que
Al Gore vença as eleições. Tudo
indica que ele vai. O outro candidato é muito estúpido. George W.
Bush não tem capacidade para dirigir nem um armazém de secos e
molhados, quanto mais este país.
Ainda que o que Al Gore fez, escolher um vice-presidente judeu, é
uma jogada para a platéia.
Quanto a mim, vou continuar a
fazer o meu trabalho como sempre fiz. Neste sentido, espero que
nada mude.
Folha - O sr. já está escrevendo algo?
Roth - Estou escrevendo algo,
sim, mas não sei o que vai acontecer com isso.
Folha - Pode-se dizer a partir deste algo que Nathan Zuckerman, seu
alter ego, morreu?
Roth Não sei. Ainda não decidi
qual o destino dele.
Folha - O que o sr. está lendo agora?
Roth - Não tenho paciência para
ficção. Há dois tipos de leitura que
faço: por prazer e para estimular
minha imaginação quando vou
escrever um livro. Estou acabando um ótimo diário, sobre os judeus romenos em Bucareste na
época da Segunda Guerra. A Romênia tinha seus próprios massacres de judeus antes mesmo dos
alemães nazistas chegarem.
Leio também um aforista do século 18, Chanford, que cometeu
suicídio. Uma de suas grandes
máximas, que eu imprimi e coloquei em minha mesa para ler todos os dias pela manhã, é: "Você
tem de engolir um sapo vivo no
café da manhã para evitar encontrar algo mais repugnante até o
fim do dia". É cínico o suficiente
para você (risos)?
Folha - Podemos esperar algo sobre aforistas franceses do século 18
e judeus romenos dos anos 40 no
seu próximo livro?
Roth - Não sei, poderia muito
bem transportar um francês para
Nova York e escrever sobre ele...
Folha - O sr. tem o hábito de reler
seus livros?
Roth - Neste momento, estou
muito apegado a "The Human
Stain", porque é o último que escrevi. Mas é estranho pensar nos
outros livros. Para fazer esta entrevista, tentei reler "Casei com
um Comunista". Não consegui
passar da primeira página. Olhava e achava: "Como fiz isto, o que
estava pensando na época?".
Folha - O sr. consideraria reescrever algum de seus livros, como fazem hoje em dia os diretores de cinema com o que consideram seus
melhores filmes?
Roth - Sei que Henry James reescreveu um de seus livros. Não,
não reescreveu propriamente,
mas revisou seus primeiros livros
quando ele já era bem mais velho.
Ele relatou à época que foi um dos
trabalhos mais dolorosos que já
fez.
Concordo com ele. É muito perigoso. Você pode olhar para uma
obra antiga e pensar que ela não é
boa, mas, com o passar do tempo,
você vê que, ainda que o livro o
envergonhe, é muito perigoso
voltar a se envolver com aquilo de
novo. O melhor é esperar que ninguém o leia (risos).
Cada vez que penso no primeiro
livro que escrevi, tenho vontade
de comprar todos e evitar que alguém mais tenha o desprazer...
Mas um livro é como um relacionamento amoroso, ainda que você veja agora quais foram os defeitos do passado, não quer reviver
aquela história de verdade.
Folha - Quais escritores o formaram?
Roth - Não sei dizer um autor,
mas poderia dizer alguns livros.
Tem alguns muito significativos
em minha vida e outros que me fizeram um escritor melhor. Quando li pela primeira vez "Seize the
Day" (1956), de Saul Bellow, foi
um choque. Como alguém escrevia de maneira tão livre, tão solta,
tão diferente de tudo o que vinha
sendo feito? O mesmo aconteceu,
em outra medida, com livros de
Henry James.
Folha - O sr. conhece algo da literatura brasileira?
Roth - Não muito, mas gosto de
Machado de Assis. Li seu "Dom
Casmurro". Coloco Capitu ao lado das grandes personagens femininas da literatura de todos os
tempos, junto a Ana Karenina e
Madame Bovary.
Na minha época da faculdade,
seu "Memórias Póstumas de Brás
Cubas" era um cult absoluto. Algumas poucas pessoas o conheciam e repassavam um exemplar
surrado de mão em mão. Descobri-lo era um prazer de poucos,
do qual me orgulho.
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