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O QUE É ISSO, COMPANHEIRO
Gabeira não se vê em personagem do filme
Dadá Cardoso/ Folha Imagem
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O deputado Fernando Gabeira, autor de ''O Que É Isso, Companheiro''
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LUIZ CAVERSAN
Diretor da Sucursal do Rio
Os personagens reais que sequestraram o embaixador americano Charles Elbrick em 1969 e se
sentem injustamente retratados
no filme "O Que É Isso, Companheiro?", de Bruno Barreto, estão
sofrendo à toa.
A afirmação é de um participante
do sequestro, o deputado federal e
colunista da Folha Fernando Gabeira, autor do livro homônimo
que deu origem ao filme.
Envolvido na polêmica que opõe
ex-sequestradores e seus partidários aos realizadores do filme -os
primeiros acusam os segundos de,
no mínimo, terem deturpado a
história-, Gabeira pretere a política em nome da estética: "Vejo o
filme como um filme", afirma.
Segundo ele, o roteiro do filme
não deve ser confundido com o livro e que seu personagem faz coisas -como ameaçar de morte o
embaixador- que Gabeira diz
não ter feito.
Folha - O filme é fiel ao livro?
Fernando Gabeira - Eu acho o
filme fiel ao livro e às minhas concepções sobre o que se passou,
desde que você não entenda a palavra fidelidade como algo literal.
Houve um acordo entre mim, o
Leopoldo Serran (roteirista) e o
Bruno (Barreto, diretor) que eles
teriam liberdade, que eu não iria
interferir.
Então, quanto aos temas mais
polêmicos, eles podem se apoiar
no livro para justificá-los.
Quanto à ambiguidade do personagem do torturador, eu já tinha
mostrado que o torturador brasileiro podia ser um bom pai de família, um bom oficial. Mas era um
torturador, um profissional. Essa
idéia foi muito bem recebida num
mesa em Roma, sobretudo pelos
escritores Gabriel García Márquez
e Julio Cortázar.
Folha - Que ano foi isso?
Gabeira - Foi depois do golpe
do Chile, 75, 76. O torturador não
podia ser visto como um monstro.
Apresentá-lo assim iria dificultar
compreender a banalidade do mal.
Folha - E o livro é fiel à história?
Gabeira - O livro é fiel à maneira como eu via a história. Não falo
uma coisa ali que eu me desminta.
Mas como é uma história vista de
muitos ângulos, pode haver confrontos com outras versões.
Folha - Há momentos da sua história que você corrigiu, como a
questão do manifesto, certo?
Gabeira - A questão do manifesto não está no livro. Não há referência no livro que eu era o autor
dele. Absolutamente!
Folha - O que você corrigiu no livro em relação ao Franklin Martins
(participante do sequestro e autor
do manifesto)?
Gabeira - Eu não corrigi, eu não
tinha dito quem era o autor. No
momento em que escrevi o livro
não estava claro para a polícia que
tinha sido ele. Por isso eu não
mencionei a autoria.
Folha - E por que essa polêmica,
em que você é acusado de ter assumido a autoria do manifesto?
Gabeira - Existem pessoas que
querem confundir o roteiro do filme com o livro. Que querem dar a
impressão de que eu escrevi o roteiro para dar à minha biografia
elementos que ela não tem. O que
acho um absurdo. O Elio Gaspari
escreveu isso com muita má fé na
Folha. Eu não preciso retocar a
minha biografia e acho que ele
também não precisa retocar a dele
dos tempos da ditadura.
O que aconteceu é que os caras
tiveram a liberdade de fazer o roteiro do filme e quando estavam
fazendo o roteiro -o próprio Bruno confessou-, pensaram: "O
Gabeira, ou esse personagem que
corresponde ao Gabeira, não tem
qualidade nenhuma. Não sabe dirigir, não sabe atirar, então vamos
botar alguma coisa nele, ele pelo
menos sabe escrever".
Possivelmente, 30 anos atrás,
meus companheiros se perguntaram: "Pô, mas o que este cara está
fazendo aqui?".
Folha - E o que você estava fazendo lá?
Gabeira - Eu já estava na clandestinidade. Havia alugado uma
casa, onde estávamos instalando
uma impressora para fazer um jornal clandestino de oposição.
Quando eles conceberam o sequestro, não tinham o lugar para
onde levar o embaixador.
Folha - Você não participou da
concepção do sequestro?
Gabeira - Isso apareceu no roteiro e as pessoas de má fé tentam
dizer que eu estou alterando...
Folha - E o personagem do filme,
como você o avalia, principalmente na cena em que ele põe o revólver na cabeça do embaixador?
Gabeira - Também não aconteceu isso.
Folha - Foi um exagero na carga
dramática?
Gabeira - Ele mesmo (Barreto)
acha que exagerou.
Folha - Você concorda com isso?
Gabeira - Havia no ar um ultimato ao governo. Mas o ultimato
foi aceito sem grandes dramas. As
minhas filhas assistiram ao filme e
ficaram impressionadas.
Folha - Elas perguntaram se você
mataria o embaixador?
Gabeira - Perguntaram. A menor, de 10 anos, estava torcendo
para o embaixador. Mas jamais
houve esse episódio de eu estar
quase matando. Isso é extremamente difícil de levar adiante, porque os americanos já não me dão o
visto (de entrada nos EUA), porque disse anos atrás que, caso não
aceitassem as nossas exigências, o
embaixador seria morto. Agora,
eles não me dão o visto nunca mais
(risos).
Folha - Você gosta do filme?
Gabeira - Eu gosto. É um grande filme político, no sentido de que
ele inova politicamente, já não é
mais o filme político das outras décadas, maniqueísta. É um filme
político moderno, como eu entendo que "Larry Flint" ("O Povo
Contra Larry Flint", de Milos Forman) é. Além disso, tem uma unidade na direção de atores muito
presente. O roteiro é bem estruturado, mantém o público que não
conhecia aquela história interessado. Acho que a música é uma grande descoberta. E, pelo que vi em
Berlim, é um dos melhores filme
do mundo este ano.
Folha - Você não acha seus companheiros daquela época foram
depreciados?
Gabeira - Na verdade, não foram retratados companheiros. O
que ele procurou fazer foi uma síntese dos principais tipos que existiam na luta armada, não só daquela ação, mas de todas as ações.
Não havia a mínima intenção de
prejudicar pessoas reais.
Ele tinha que trabalhar várias
personagens. É um painel psicológico da luta armada através dos
participantes da ação. Você é obrigado a condensar épocas e até a fazer com que no final as pessoas já
tivessem uma visão crítica da luta
armada, quando isso aconteceu
muito mais tarde.
Folha - Então você acha que não
dá para identificar personagens do
filme com pessoas da vida real, como está ocorrendo?
Gabeira - Absolutamente. Nem
dá para caracterizar que aquele
personagem sou eu. Não sou eu!
As pessoas que se sentem prejudicadas vão sofrer inutilmente, e as
que se sentem beneficiadas vão se
alegrar estupidamente.
Você tem que se acostumar com
essa relação com a ficção. Outros
filmes virão sobre esse momento
histórico. E os artistas vão se apropriar da maneira deles, queiram os
personagens da história ou não.
Folha - Por que você acha que
eles estão tendo dificuldade de se
relacionar com a ficção?
Gabeira - Em primeiro lugar
porque são pessoas de extremo valor, que tiveram uma participação
generosa naquele momento e que
não foram reconhecidas pela sociedade brasileira.
Folha - Você acha que há um ressentimento?
Gabeira - Quando eles se sentem retratados de uma maneira
que não absorve a riqueza, a generosidade e a complexidade deles,
eles ficam sentidos. Eles não se distanciam do fato histórico. Eles
acham que a sociedade brasileira
está devendo um documentário.
Folha - Mas há um ressentimento
da parte de seus antigos companheiros em relação a você. Você
não cumpriu o papel de contextualizá-los?
Gabeira - São pessoas que eu
respeito e admiro muito...
Folha - Parece que esse sentimento não é mútuo...
Gabeira - De modo geral eu diria que não é mútuo. O que pode
ter contribuído é que, vivendo numa situação limite -luta armada,
clandestinidade, cadeia, exílio-
evoluímos de maneira diferente.
A minha evolução foi ditada pelas minhas contradições internas e
pelas circunstâncias que eu encontrei. A deles também. Não quero
dizer que a minha tenha sido melhor que a deles. O meu livro não
foi feito com a intenção de ser uma
"honra ao mérito".
Não é justo dizer que eu sou irônico a respeito dos companheiros.
Eu sou irônico a respeito de mim
mesmo. Eu não pude render as homenagens a eles em meu livro porque não era essa a minha intenção.
Folha - Você não acha que o filme é muito mais triste e menos
irônico e debochado do que sua
fonte de inspiração, que é o livro?
Gabeira - O livro olha o que se
passou da perspectiva de um cara
que sobreviveu e não está mal. O
filme termina com pessoas extremamente sofridas.
Folha - O cinema é um novo caminho profissional para você?
Gabeira - Eu gosto muito da
linguagem, quero contribuir com
o cinema brasileiro. Vejo o filme
como um filme.
Um dos debates mais importantes que eu já fiz foi sobre "Terra
em Transe" (de Glauber Rocha),
há 30 anos. Discutíamos o nosso
futuro político. Hoje eu sou forçado a discutir por meio do filme do
Bruno o nosso passado político.
Não se discute o filme -ele é um
pretexto para se discutir suas posições políticas.
O Marcelo Coelho diz na Folha
que o filme safadamente pega a aurora e o pôr-do-sol para agradar o
mercado exterior e tal. Como se
naquele momento a aurora e o
pôr-do-sol do Rio não continuassem bonitos.
São pouquíssimos os que analisam o filme esteticamente. Trinta
anos depois eu não queria ter a
mesma posição que eu tive sobre
"Terra em Transe", que tinha
uma proposta política que eu não
gostava. Eu anulei a estética.
Folha - Você se considera, então,
30 anos à frente?
Gabeira - Não. É que a estética
costuma nos dizer coisas na frente
da política. Peço às pessoas que
querem ver as coisas que não anulem o aspecto estético, ficar preso
só à questão política é perder a dimensão de uma obra.
Folha - Você acha isso possível
até para quem foi torturado?
Gabeira - Talvez a mensagem
estética seja mais interessante para
uma pessoa que foi torturada do
que a mensagem política.
Folha - O filme vai ser lançado
nos EUA e você vai se defrontar
mais uma vez com o problema do
visto...
Gabeira - Agora eu terei um
aliado importante para entrar nos
EUA, que é a Miramax, que comprou o direito de lançar o filme lá.
Creio que agora vai surgir um movimento cultural interno muito
forte para me ajudar a entrar lá.
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