São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2008

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LIVROS

Crítica/"Machado Maxixe: O Caso Pestana"

Wisnik encanta em ensaio sobre Machado e música

Em "Machado Maxixe", crítico utiliza referências múltiplas e formato não-cartesiano

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pode agradar ao leitor interessado em literatura e em música no Brasil um ensaio sobre o modo como a obra de Machado de Assis lidou com a aclimatação das formas musicais européias aqui? Não há dúvida de que sim.
Machado, como se sabe, freqüentou em vários momentos a questão; se o ensaio tomar em conta "Um Homem Célebre", relato sobre o dilema irresolvido do pianista Pestana -entalado entre o desejo de compor como os clássicos europeus e a vocação de fazer brotar polcas sacudidas já brasileiras-, estamos feitos, já que nesse conto tudo gira, dança, em torno a esse tema. Mas pode agradar este mesmo ensaio se ele não tiver plano de vôo explícito e, para piorar, se ele misturar referências teóricas bastante díspares, da história pura e dura do Segundo Império à semiótica, passando pela sociologia da arte e pela psicanálise, mas centrando forças na historiografia e na crítica musicais? Ainda assim pode, é claro, desde que haja talento na passagem de uma coisa a outra, oferecendo em abundância analítica o que eventualmente falte em amarração teórica.
Para ler um conto como o do desventurado Pestana, pode ter bastante cabimento essa combinação heterodoxa de conceitos, ainda quando postos em relação mais pela contigüidade do que por uma estratégia interpretativa de conjunto.
Pelos dois lados cabe o elogio ao ensaio "Machado Maxixe", agora publicado em livro solo.
O autor é José Miguel Wisnik, músico, professor de Literatura Brasileira, ensaísta de nomeada, que alcança, neste trabalho, um ponto alto de sua carreira.
No texto, Wisnik usa de suas múltiplas habilidades e variada formação para apreciar o citado conto de Machado.

Encantamento
O ensaio é encantador, no bom sentido, por levar o leitor para zonas de pensamento não-cartesiano mediante passagens charmosas, mas também no mau, por obrigá-lo a acompanhar o fluxo da reflexão sem poder medi-lo em relação a um propósito claro, que não há; assim, sem oferecer clareza quanto ao destino desejado, em parte ele mina as possibilidades de debate, por não expor seus interesses de conhecimento; e essa omissão, que, repito, tem lá seus encantos, só se vê quando se pergunta, por exemplo, pelas escolhas teóricas mais fundas, mais radicais. Quais são elas? Salvo engano, há apenas uma exclusão e não mais que um par de afirmações no centro dessa resposta. O ensaio vai agregando entradas teóricas, mas em significativo momento bronqueia: "Machado trabalha esse substrato coberto de tabu -um tabu sociocultural, político, econômico, racial, sexual, existencial, cujo cerne persistente é difícil de deslindar até hoje, e que a antropologia politicamente correta, tratando-o de maneira unívoca, só faz confirmar e recobrir". A briga é contra um inimigo teórico que lê este ponto nevrálgico da cultura brasileira de modo errado; que ponto é esse?
Dizendo de modo breve e impreciso, é a condição mulata, que Wisnik trata de saudar em seu ensaio, tanto na encarnação machadiana quanto na maxixeira. Nada a estranhar, então, que as afirmações de afinidade envolvam Gilberto Freyre (que porém é "apologético") e o mais citado de todos, Mário de Andrade, evocado aqui em sua extensa contribuição enciclopédica mas também em uma sua interpretação, mais dialética do que a média, sobre a rítmica brasileira, interpretação que Wisnik aproxima nada menos que da "Dialética da Malandragem", conhecido ensaio de Antonio Candido.

Que Mario é esse?
As razões de Wisnik são substantivas e bem apresentadas, o que não impede alguma argüição -por exemplo, sobre esta evocação de Mario de Andrade como chancelando a saudação de Wisnik à síntese da polca amaxixada, quando se sabe que o prócer modernista rejeitou um desdobramento decisivo dessa síntese, o samba carioca, como representativo.
De todo modo, com "Machado Maxixe" temos um passo de valor no debate machadiano, assim como na reflexão sobre o processo da música popular urbana no Brasil, passo que é marcado por certa celebração eufórica da síntese modernista paulista.

LUÍS AUGUSTO FISCHER, autor de "Machado e Borges" (ed. Arquipélago), entre outros, é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

MACHADO MAXIXE: O CASO PESTANA
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 19,90 (96 págs.)
Avaliação: ótimo

RAIO-X

José Miguel Soares Wisnik, 60, é músico, compositor e ensaísta nascido em São Vicente (SP)

LITERATURA
Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP; recebeu o prêmio Jabuti (1978) de autor revelação

Algumas Publicações:
"O Coro dos Contrários - A Música em Torno da Semana de 22" (1977)
"O Som e o Sentido - Uma Outra História das Músicas" (1989)

MÚSICA
Autor de trilhas para o Grupo Corpo, Teatro Oficina e filmes como "Janela da Alma"; recebeu três vezes (91,93,95) o Prêmio APCA de música para teatro

Discos-solo:
"José Miguel Wisnik" (1992)
"São Paulo Rio" (2000)
"Pérolas aos Poucos" (2003)


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