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Marcelo Leite
Um defeito de cor
Há muito mais contribuição iorubá e jeje na herança dos pretos de todo o Brasil, não só da Bahia
Quem não comprar e ler um livro com esse título é ruim da
cabeça ou doente do ouvido.
Fisgado por ele e pelos elogios de Millôr Fernandes na orelha do romance,
enfrentei as 952 páginas escritas por
Ana Maria Gonçalves.
Saí mais feliz do que entrei. E olhe
que o livro tem muitos defeitos, a começar pelo tamanho injustificado
(mesmo após ter ceifado 450 páginas,
a autora poderia ter muito bem dispensado outras 300, mas parece ter se
afeiçoado demais aos frutos de dois
anos de pesquisa).
A autobiografia de Kehinde (Luísa
Andrade da Silva) narrada por Gonçalves mergulha o leitor na vida atribulada de uma menina do Daomé. Seqüestrada aos oito anos, termina vendida como escrava ao Brasil.
Da morte de Taiwo, sua irmã gêmea
("ibêji", em ioruba), no tumbeiro para
Salvador, ao périplo infrutífero em
busca do filho mulato vendido pelo
pai português para saldar dívida de jogo, o romance é um passeio pouco edificante pelo século 19 afro-brasileiro.
As condições de vida de um escravo
não servem para deixar ninguém feliz,
decerto. Não faltam no livro narrativas cruentas de escravas com olhos arrancados e escravos castrados a faca e
tição, apanhados no embate sexual
entre sinhô e sinhá.
Há também espaço suficiente, nas
952 páginas, para amizade, amor e sexo consensual entre afro e luso-brasileiros. Sobra cordialidade. Ainda assim, a miscigenação não chega a insinuar signo algum de felicidade. Quando muito, de ambivalência.
O contentamento verdadeiro surge
com a descoberta de um mundo nunca vislumbrado, o das várias etnias e
culturas africanas que aportaram no
Brasil por força da escravidão. As religiões, os panos, os falares, as comidas.
E as palavras, os nomes...
Hauçá. Muçurumim. Koikumo. Malê. Agontimé. Chachá. Axé. Egungum.
Egum. Abiku. Geledé. Ebó. Jeje. Tudo
tão novo na língua que o leitor branco
por vezes se sentirá como se o defeito
de cor estivesse na sua (a expressão
designava o impedimento legal, porém jeitosamente contornável, a que
negros assumissem certos cargos).
A esta altura é o leitor desta coluna
que deve estar sentindo algo estranho.
Onde foi parar a ciência? Calma.
Kehinde/Luísa nasceu no Daomé,
Costa da Mina, onde hoje se encontram países como Benin. O leitor desinformado estranhará a quase total
ausência de menções a Angola e Moçambique, colônias lusas de onde presumiria que veio a maior parte dos escravos para o Brasil.
É o que diz, ou dizia, a historiografia. Mesmo com a destruição dos documentos da escravidão ordenada por
Rui Barbosa em 1890, pesquisadores
como Herbert Klein e David Eltis
(EUA) haviam estimado com base em
registros de viagens que só 10% dos
escravos embarcados para o Brasil tinham saído da África Ocidental, região entre o Senegal e a Nigéria, berço
de Luísa/Kehinde.
Pois essa estimativa foi agora posta
em questão pela genética, como revela
reportagem de Ricardo Zorzetto na
revista "Pesquisa Fapesp". Analisando o DNA de pretos (negros e pardos)
de São Paulo, Rio e Porto Alegre, Maria Cátira Bortolini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e Sérgio
Danilo Pena (Universidade Federal de
Minas Gerais), encontraram respectivamente 40%, 31% e 18% de tipos genéticos associados com aquele pedaço
da África.
Há muito mais contribuição iorubá
e jeje, assim, na herança dos pretos de
todo o Brasil, não só da Bahia. Os parentes, orixás, ancestrais e voduns de
Kehinde povoaram o país, na diáspora
que sua biografia representa tão bem.
MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma"
(Editora da Unesp, 2007), que estará autografando terça-feira, a partir das 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073, Centro, São Paulo, tel. 3170-4033)
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