S�o Paulo, sexta-feira, 9 de agosto de 1996
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A pol�mica do Novo Mundo

EVALDO CABRAL DE MELLO

Este livro de hist�ria das id�ias reconstitui uma velha pol�mica, h� muito esquecida. No s�culo 18, Buffon afirmou a inferioridade das esp�cies naturais da Am�rica continente quando comparadas �s do Velho Mundo, procurando explic�-la cientificamente. Por sua vez, o abade Raynal e o prussiano De Pauw sustentavam a inferioridade do pr�prio homem americano. Dela, ningu�m escapava: nem os �ndios nem os europeus nascidos na Am�rica, nem as v�rias castas de mesti�os produzidos pela coloniza��o. Naturalmente, como veremos, semelhantes teorias teriam um forte impacto nas ent�o col�nias europ�ias �s v�speras de se tornarem na��es independentes. A�, desde o s�culo 17, o inca Garcilaso, Antonio Le�n Pinelo e outros vinham louvando as qualidades de toda a ordem que caracterizavam o Novo Mundo e at� localizando nele o para�so terreal, o que dera margem em Seiscentos e Setecentos a outro acendrado debate intelectual.
No come�o do s�culo 18, antes, portanto, de Buffon e de De Pauw, o c�lebre beneditino Feijoo sa�a, na Espanha, em defesa dos "criollos", gabando a "excel�ncia dos engenhos americanos" e ousando sustentar o que o filho de espanhol nascido na Am�rica gozaria de "mais vivacidade ou agilidade intelectual" do que o "gachupin", termo depreciativo com que eram designados os naturais da metr�pole. Foram os jesu�tas expulsos pela Coroa espanhola que, uma vez na Europa, ser�o os primeiros a contestar as teorias de Buffon e De Pauw, em especial, o padre Francisco Javier Clavigero, que em 1780 publicou sua "Hist�ria Antiga do M�xico". Frente a De Pauw, Clavigero advogou sobretudo a causa do �ndio mexicano. Outro jesu�ta, Juan Ignacio Molina, dedicou-se � refuta��o das teorias de Buffon. O que para o naturalista franc�s fora a prova da inferioridade, para Mollina era apenas o sinal de uma diferen�a. Que a rea��o tenha come�ado pelos jesu�tas tinha, ali�s, sua raz�o de ser.
Desde o s�culo 16, eles haviam sido, frente a outras ordens religiosas tamb�m dedicadas � evangeliza��o, os grandes defensores da capacidade inata do ind�gena americano n�o s� para converter-se � verdade do cristianismo como tamb�m para praticar as artes e of�cios pr�prios da civiliza��o. Na Am�rica hisp�nica, a rea��o �s "cal�nias" de Buffon ou de De Pauw surgiu compreensivelmente na cidade do M�xico e em Lima. Sendo os principais centros pol�ticos e intelectuais da col�nia, dispunham de um meio universit�rio ativo, em que a rivalidade entre "criollos" e "gachupines" alcan�ava grande intensidade.
O livro de Gerbi tem tamb�m o m�rito de narrar a dimens�o brit�nica da pol�mica do Novo Mundo, que se iniciou com a publica��o pelo escoc�s William Robertson da sua hist�ria da Am�rica, a qual conheceu de imediato enorme sucesso entre o p�blico culto da Europa. Robertson adotou as teorias de Buffon e de De Pauw, dando-lhe um cunho mais liter�rio e acess�vel. Ele mostrou-se tamb�m mais discriminador do que De Pauw no tocante � sustentada inferioridade do homem americano, fazendo quest�o de distinguir entre os nativos das �reas tropicais e os das �reas temperadas, por um lado; e, por outro, entre os habitantes das sociedades primitivas e os das civiliza��es andinas e mexicanas. Mas, enquanto no mundo hisp�nico a querela tendeu a concentrar-se em torno do homem, alcan�ando assim uma conota��o pol�tica mais contundente, entre os anglo-sax�es ela disse sobretudo respeito ao meio f�sico.
Revolucion�rios como Franklin, Jefferson, especialmente nas suas "Notas sobre a Virg�nia", e Thomas Paine, empenharam-se em contradizer essas teorias que soavam igualmente ofensivas aos ouvidos dos colonos que haviam fundado o primeiro governo livre do continente. Jefferson alegava com raz�o que De Pauw fora apenas um compilador do trabalho dos outros e que Robertson n�o passava de um tradutor de Buffon. Abigail Adams, a mulher de John Adams, embaixador em Londres da rec�m-fundada rep�blica, ia mesmo ao extremo oposto de sustentar que, na Europa, os p�ssaros n�o tinham o canto t�o mel�dico, nem as frutas eram t�o doces nem as flores t�o cheirosas nem a gente t�o virtuosa quanto nos Estados Unidos. Ao longo do s�culo 19, a querela entre brit�nicos e norte-americanos manifestar-se-� sobretudo na literatura e dela participar�o alguns grandes nomes como Trollope, Dickens, Melville, Thoreau, Whitman e Henry James.
Como indica Gerbi, os dram�ticos acontecimentos pol�ticos de fins do s�culo 18 e come�os do 19, inclusive o movimento de independ�ncia das col�nias ib�ricas, e, por outro lado, o pr�prio desenvolvimento das ci�ncias hist�ricas, teriam o efeito de infletir o rumo da pol�mica. O romantismo, sobretudo com Chateaubriand, tirou partido do exotismo do Novo Continente, embora o autor de "Atala", no tocante � sociedade dos Estados Unidos, pa�s que ali�s conheceu superficialmente, tenha ficado com uma impress�o negativa, que, no final da sua vida, seria refor�ada pela leitura da obra de Tocqueville. Para ele, como para tantos outros, as Am�ricas ofereciam um contraste entre a exuber�ncia da sua natureza e a degrada��o dos seus habitantes, contraste que ainda ressoar� entre n�s, h� 70 anos, no p�rtico do livro de Paulo Prado: "Numa terra radiosa vive um povo triste".
O entusiasmo de Humboldt tamb�m se dirigiu preferencialmente ao meio, a cujo respeito confessar�: "O mundo tropical � meu elemento". E, de regresso � Alemanha, coerente com esta predile��o, tratou de viver em aposentos com a temperatura m�nima de 20 graus. Acerca do homem, Humboldt n�o compartilha os preconceitos do seu conterr�neo De Pauw, julgando que o �ndio foi v�tima sobretudo de um brutal processo de regress�o cultural.
A outro alem�o caber� reelaborar e enriquecer a surrada tem�tica de Buffon e de De Pauw. Tratou-se, nada mais nada menos, de Hegel, a cuja vis�o das Am�ricas, Gerbi dedicou excelentes p�ginas, como, ali�s, j� fizera Ortega y Gasset. O Novo Mundo apresentava a Hegel um problema intelectual curiosamente reminiscente do que haviam confrontado tr�s s�culos antes os mission�rios franciscanos do M�xico: onde situar o Novo Mundo no plano da hist�ria universal? Os franciscanos, impregnados da escatologia de Joaquim de Fiore, n�o tiveram maior dificuldade em encaix�-lo, segundo a ordem providencialista, no futuro reinado do Esp�rito Santo, que devia suceder ao reinado do Pai e ao do Filho. Hegel, ao contr�rio, n�o encontrou lugar onde inseri-lo na sua concep��o da hist�ria universal como atualiza��o do Esp�rito com "E" mai�sculo. A Am�rica n�o tinha papel algum a desempenhar nesta trama, em consequ�ncia da sua imaturidade, tanto natural quanto social; afinal de contas, "nem todos os povos contam na hist�ria universal".
Destarte, ela pertenceria n�o � hist�ria, mas � natureza, que segundo ele n�o tinha hist�ria, que era visceralmente a anti-hist�ria. Da� que, ainda nas palavras do fil�sofo, "a Am�rica sempre se mostrou e continua se mostrando f�sica e espiritualmente impotente". Destarte, como assinalou Gerbi, "Hegel vai assim, sem sequer dar-se conta, muito mais al�m do pr�prio De Pauw". A condena��o hegeliana sofre apenas a matiza��o decorrente de outra de suas ant�teses, a que enxergava entre a Am�rica do Norte e a do Sul. Se a Am�rica viesse a ter hist�ria, esta s� poderia vir da Europa, pois "o que na Am�rica acontece, vem da Europa". Portanto, ela s� poderia ter lugar na parte setentrional do continente. Os Estados Unidos, � certo, ainda dispunham de demasiados vazios demogr�ficos, e, por conseguinte, n�o tinha ainda exist�ncia autenticamente pol�tica e espiritual. Mas como eles haviam recolhido "a superabund�ncia da Europa", reinavam ali os valores da ordem, da liberdade e do livre exame, a contrastarem, na parte hisp�nica, com a anarquia, o autoritarismo, o militarismo e o obscurantismo cat�lico.
Destarte, o conflito entre os dois segmentos da Am�rica poderia vir a constituir "o centro de gravidade da hist�ria universal". Mas como tudo isto pertencia ao futuro, o fil�sofo se desinteressou do assunto, para grande frustra��o de Gerbi, tanto mais que, em princ�pio, a filosofia da hist�ria esteja naturalmente mais preocupada mais com o futuro do que com o passado. Por�m, Hegel era dos que estavam convencidos de que raiara finalmente a aurora do "fim da hist�ria", gra�as � atualiza��o de todas as possibilidades do Esp�rito. Escusado assinalar que a dicotomia hegeliana entre o norte e o sul da Am�rica tamb�m estava fadada a conhecer grande sucesso intelectual.
Esta recens�o est� longe de haver feito justi�a � riqueza do livro de Gerbi. Ao percorrer suas p�ginas, algumas reflex�es se oferecem espontaneamente. A primeira, a de que a obra n�o poderia escapar ao defeito constitutivo de toda hist�ria das id�ias, a saber, a perspectiva meramente l�gica e cronol�gica da sucess�o das teorias a que passa em revista, como se a sua produ��o consistisse apenas no processo pelo qual umas saem das outras, sem refer�ncia aos contextos hist�rico-sociais. Mas a culpa por esta limita��o cabe antes ao g�nero do que ao autor. De qualquer modo, a tarefa de reconstruir tais contextos no caso da pol�mica do Novo Mundo seria tarefa especialmente �rdua em consequ�ncia da variedade e complexidade dos mesmos, uma tarefa a exigir uma equipe e n�o um historiador isolado. Da� que Gerbi tenha tratado de maneira necessariamente sum�ria as repercuss�es da disputa em termos das rivalidades h� muito existentes na Am�rica entre "criollos" e "gachupines", isto �, os filhos de espanh�is j� nascidos na terra e os emigrantes metropolitanos acusados de monopolizarem as oportunidades de ascens�o social nas �ndias de Castela.
Constituindo em boa parte a reelabora��o, sob a forma de uma pretendida reflex�o cient�fica, dos preconceitos veiculados pelo pr�prio colonizador, essas teorias vinham agora servir de instrumento ideol�gico nos conflitos sociais e pol�ticos. Se f�sica e mentalmente, em decorr�ncia do clima ou em consequ�ncia da ra�a, o nativo das Am�ricas era inferior ao reinol, de que t�tulos disporia para legitimar sua ambi��o de governar o Novo Mundo e de explorar-lhe as riquezas? Descendente de espanhol ou de �ndio, ele se veria relegado a uma posi��o de permanente subordina��o -e isto no exato momento em que j� via sua prec�ria posi��o na sociedade colonial amea�ada pelo programa de reformas de Carlos 3�, que podava, ou era percebido como podando, v�rias das conquistas que o patriciado "criollo" havia realizado desde os prim�rdios da coloniza��o. N�o surpreende assim que as teorias desabonadoras do homem americano fossem objeto de controv�rsia nas pr�prias Cortes de C�diz (1811).
Uma restri��o mais s�ria poderia ser feita � obra de Gerbi, na medida em que finca seu marco inicial nas id�ias de Buffon e De Pauw, quando, na realidade, a pol�mica de que ele se ocupa era a continua��o de disputas intelectuais mais antigas, que datavam dos s�culos 16 e 17. Tanto assim que, posteriormente � reda��o do seu livro, Gerbi resolveu lan�ar um olhar sobre a pr�-hist�ria da querela, do que resultou a conclus�o de que a tese buffoniana era "menos original do que ele supunha", e de que, em todo caso, ela representava uma decanta��o de muito do que se escrevera nos dois s�culos e meio anteriores. Da� que, ao falecer em 1976, o autor estivesse �s voltas com a reda��o de outro livro, publicado postumamente sob o t�tulo de "A Natureza das Novas �ndias", o qual devia constituir um d�ptico com "O Novo Mundo". Nele, Gerbi s� p�de analisar a concep��o da natureza americana entre as cartas de Colombo e a "Hist�ria Geral e Natural das �ndias", de Gonzalo Fernandez de Oviedo, cuja primeira parte foi publicada em 1535.
Gerbi trabalhou no interior de uma tradi��o intelectual, a da hist�ria das id�ias, que vicejou com anterioridade ao que hoje se denomina hist�ria das mentalidades, cujo surto datou, como se sabe, dos anos 60 e, sobretudo, dos 70. Isto significa que, ao encetar suas investiga��es nos anos 30, ele n�o se p�de beneficiar da contribui��o que trar� � pr�tica historiogr�fica a aplica��o da id�ia, relativamente simples, da circularidade e do m�tuo enriquecimento da cultura erudita e da cultura popular. Simultaneamente � sua formula��o pelos antigos cronistas ib�ricos, v�rias formas da no��o da diferen�a americana relativamente � Europa circulavam amplamente como produto da experi�ncia quotidiana dos colonizadores. Num e noutro plano, elas exerciam inclusive, embora n�o unicamente, um papel de car�ter ideol�gico nas lutas entre rein�is e os descendentes de rein�is j� nascidos na Am�rica.
Por fim, o leitor interessado na hist�ria da controv�rsia do Novo Mundo n�o deixar� de estranhar o papel praticamente inexistente do africano nessas discuss�es eruditas. Assim como o homem branco, ele foi tamb�m um desterrado nas Am�ricas; e duplamente desterrado devido � perda da liberdade. Devido a um incr�vel daltonismo intelectual, os participantes da pol�mica estavam preocupados com o �ndio e, em menor grau, com o "criollo", n�o com o africano, e isto a despeito da sua maci�a presen�a nas sociedades organizadas ao longo de um arco que ia do sul dos Estados Unidos ao Brasil, passando pelas ilhas do Caribe. Nesta disputa, a natureza teve sempre mais import�ncia que o homem; o ind�gena mais do que o europeu, e o europeu mais do que o africano. Da� que ela hoje possa parecer irrelevante para nossas preocupa��es nacionais, marcada desde o s�culo 19 pelo problema do escravo e pelo problema da escravid�o.

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