S�o Paulo, domingo, 24 de mar�o de 1996
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O destino da revolu��o racionalista

RAUL LANDIM FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A filosofia de Descartes conheceu o destino de todas as obras inovadoras: desde a sua publica��o ela suscitou resist�ncias, obje��es e reconhecimento. Fato significativo na hist�ria da filosofia, o mais importante livro filos�fico de Descartes, "Medita��es Metaf�sicas" (a edi��o original latina intitulava-se "Meditationes de Prima Philosophia"), desde a sua primeira edi��o (1641) foi publicado acompanhado por seis s�ries de obje��es, formuladas por fil�sofos renomados do s�culo 17, como Hobbes, Arnauld, Gassendi etc. e por respostas de Descartes a cada uma destas obje��es. Um texto escrito na primeira pessoa do singular, preocupado em analisar e solucionar quest�es c�ticas e solipsistas, como � o texto das "Medita��es", nos surpreende n�o s� por aliar a beleza do estilo ao rigor da argumenta��o, mas tamb�m pela inten��o de estabelecer um di�logo com a comunidade filos�fica sob a sua mais dif�cil forma: a de obje��es e respostas.
Se a obra filos�fica cartesiana, como era de se esperar, suscitou resist�ncias, n�o foi uma posteridade tardia que a reconheceu como um texto fundamental da hist�ria da filosofia: treze anos ap�s a morte de Descartes, ocorrida em fevereiro de 1650, Espinosa publicou uma magistral introdu��o ao sistema cartesiano ("Princ�pios da Filosofia de Descartes", 1663). O primeiro "historiador" da filosofia cartesiana foi, assim, tal como Descartes, um cl�ssico da filosofia. Mas, se a men��o a Descartes e a alguns de seus textos � uma constante na obra de in�meros outros fil�sofos posteriores, nem todos que o citaram e o criticaram o leram com tanta aten��o e sutileza como Espinosa.
Em geral, os cl�ssicos da filosofia referem-se aos outros cl�ssicos para explicitar suas pr�prias teorias e n�o para descrever corretamente as teses de seus advers�rios. Isso ocorre, por exemplo, com Kant na "Cr�tica da Raz�o Pura": as refer�ncias a Descartes tornam mais claras as pr�prias teses kantianas, embora apresentem de maneira imprecisa as proposi��es cartesianas que est�o sendo postas em quest�o. � certo, no entanto, que cabe aos fil�sofos fazer filosofia e n�o hist�ria da filosofia.
A preocupa��o em redescobrir a verdade hist�rica do sistema cartesiano ap�s tantas "deturpa��es" geniais de fil�sofos cl�ssicos � uma tarefa para os historiadores da filosofia.
Foi sobretudo na segunda metade do s�culo 20 que se procurou responder a este desafio. In�meros estudos sobre o cartesianismo foram ent�o publicados. Na diversidade de seus m�todos de interpreta��o de texto, a historiografia francesa produziu v�rias obras sempre eruditas e muitas vezes originais. Destacam-se, por exemplo, as excelentes an�lises de M. Gu�roult ("Descartes Selon l'Ordre des Raisons"), de J.-M. Beyssade ("La Philosophie Premi�re de Descartes") e de J.-L. Marion ("L'Ontologie Grise de Descartes").
Historiadores anglo-sax�es, aparentados aos m�todos da filosofia anal�tica, com suas sutis e penetrantes "reconstru��es" de textos filos�ficos, contribu�ram tamb�m nesta segunda metade de s�culo para uma melhor compreens�o e avalia��o da filosofia cartesiana. Os estudos de H. Frankfurt ("Demons, Dreamers and Madmen"), de M. Wilson ("Descartes") e de E. Curley ("Descartes Against the Skeptics") comprovam esta afirma��o.
Mas a filosofia cartesiana � apenas relevante para os que se ocupam de hist�ria da filosofia? Pode ela, al�m de sua relev�ncia hist�rica, contribuir para o esclarecimento de quest�es filos�ficas atuais? Sem d�vida, os textos cartesianos ser�o sempre estudados, pois neles se encontram os princ�pios (1) da filosofia moderna. Mas poderia aqui o termo "princ�pio" ser tomado no seu duplo sentido: de come�o e de fundamento?
Uma resposta adequada a esta quest�o exige uma an�lise do projeto cartesiano.
O projeto cartesiano
"Assim, toda a filosofia � como uma �rvore cujas ra�zes s�o a metaf�sica, o tronco � a f�sica, e os ramos, que saem deste tronco, s�o todas as outras ci�ncias que se reduzem finalmente a tr�s principais, a saber, a medicina, a mec�nica e a moral...". Nesta carta-pref�cio � edi��o francesa dos "Princ�pios da Filosofia", Descartes sintetiza sua concep��o de filosofia ou, mais precisamente, de saber ("scientia"). Ao inv�s de sugerir uma cadeia dedutiva de conhecimentos que se expandiriam por acumula��o progressiva de novas informa��es, a met�fora da �rvore permite detectar em cada saber seus pressupostos te�ricos e, assim, definir, de uma maneira precisa, o papel da "filosofia primeira", que � o de fundamentar todos os outros saberes.
A �rvore deve ser interpretada regressivamente, do condicionado a suas condi��es, e n�o progressivamente, da condi��o ao condicionado. O que ela sugere n�o � que da f�sica se possa derivar, segundo certas condi��es, a medicina, mas que a medicina pressup�e a f�sica e que a f�sica, por sua vez, pressup�e a metaf�sica, sendo esta �ltima a ci�ncia primeira, pois n�o pressup�e qualquer outro saber.
Assim, ao contr�rio da metaf�sica cl�ssica, a filosofia primeira cartesiana n�o � uma ci�ncia que visa prioritariamente o conhecimento de objetos espec�ficos (como, por exemplo, o conhecimento da alma imaterial, de Deus etc.). Se ela demonstra a exist�ncia de certos objetos � porque somente por meio deste conhecimento � poss�vel fundamentar as outras ci�ncias. A metaf�sica visa, portanto, a fundamenta��o do saber.
Mas o que significa "fundamentar o saber"? � necess�rio, escreve Descartes no in�cio das "Medita��es", "estabelecer algo de firme e de constante nas ci�ncias" descobrindo "um ponto... fixo e seguro". Por que Descartes n�o afirma apenas que a fundamenta��o da ci�ncia necessita de um ponto fixo e verdadeiro?
Como n�o se pode derivar da certeza a verdade de uma proposi��o, e como uma proposi��o pode ser verdadeira sem que haja certeza de sua verdade, a fundamenta��o do saber envolver� dois aspectos independentes: verdade e certeza. Sem a conex�o dos dois n�o h� propriamente saber, no sentido cartesiano do termo "saber".
Mas como � poss�vel conectar estes dois aspectos aut�nomos do saber? Como a verdade pode engendrar uma certeza e como uma convic��o subjetiva pode ser o sinal de uma proposi��o verdadeira? Gra�as � no��o de crit�rio de verdade, � poss�vel ligar de modo necess�rio verdade e certeza. Uma proposi��o que satisfa�a o crit�rio de verdade deve ser considerada verdadeira e, gra�as � satisfa��o deste crit�rio, ela engendra uma certeza fundamentada (objetiva).
A quest�o da fundamenta��o do saber depende, portanto, da no��o de crit�rio de verdade. Como descobri-lo e como justific�-lo? Eis uma quest�o que a metaf�sica cartesiana, em raz�o da sua pretens�o fundacional, n�o pode esquivar.
A g�nese do sistema
Se a metaf�sica cartesiana � uma filosofia primeira, isto �, um saber que pretende fundamentar todos os outros saberes, o ponto de partida da metaf�sica deve ser, ele pr�prio, inquestion�vel. Mas como demonstrar a sua inquestionabilidade? A primeira proposi��o verdadeira do sistema n�o pode depender de qualquer princ�pio anterior. Como ent�o justific�-la? Para resolver este problema, a metaf�sica pr�-cartesiana recorreu muitas vezes � no��o de primeiros princ�pios por si evidentes. Enquanto princ�pios primeiros, eles n�o se apoiavam em qualquer outro princ�pio; enquanto evidentes, eles dispensavam qualquer demonstra��o. Descartes percebeu imediatamente que esta argumenta��o seria o caminho mais f�cil para o dogmatismo ou para o seu contr�rio: o ceticismo.
� neste contexto que a d�vida cartesiana desempenha um papel importante. Duvida-se de todos os g�neros de conhecimento para se encontrar um princ�pio que, se colocado em quest�o, acarretaria uma contradi��o. Portanto, se um princ�pio � de fato indubit�vel, n�o pode ser negado e pode, ent�o, ser considerado justificadamente como um primeiro princ�pio.
O processo de d�vida desenvolve-se, ent�o, por meio de uma hierarquiza��o crescente entre pretensos saberes (cren�as) que pertencem a um g�nero de conhecimento e raz�es de duvidar; para cada "antiga opini�o" corresponde uma raz�o de duvidar que a p�e em quest�o. Mas, deste confronto entre cren�as e raz�es de duvidar, emerge sempre um novo g�nero de pretenso saber que ainda n�o foi posto em quest�o. Avan�a-se assim no processo de d�vida pela descoberta de novas cren�as que n�o foram postas em quest�o pelas raz�es de duvidar anteriores.
Progressivamente, s�o colocados em quest�o os pretensos saberes engendrados pelas faculdades sens�veis (qualidades secund�rias e exist�ncia dos objetos singulares que podem ser percebidos sensivelmente), pela imagina��o e finalmente pela raz�o. O processo da d�vida culmina assim na mais radical das d�vidas: a raz�o, definida como faculdade que discrimina o verdadeiro do falso e que, portanto, formula crit�rios de verdade, � posta em quest�o pela d�vida do deus enganador.
Nenhuma cren�a resiste ao processo de d�vida cartesiana. No entanto, deste processo emerge um enunciado (que ainda n�o se constitui num saber, pois n�o ergue qualquer pretens�o de verdade), que � a condi��o da pr�pria d�vida: Eu penso.
S� o ato de pensamento (consci�ncia), quando realizado, � indubit�vel. Com efeito, � imposs�vel dissociar a realiza��o do ato de consci�ncia da consci�ncia do pr�prio ato. Ter consci�ncia significa realizar um ato de consci�ncia e, vice-versa, realizar um ato de consci�ncia significa ser consciente do ato. Como todo ato sup�e o sujeito do ato, todo ato de consci�ncia sup�e o sujeito de consci�ncia. Mas ser sujeito do ato de consci�ncia significa ser consciente e, por sua vez, ser consciente significa ser consciente de ser sujeito de seu ato de consci�ncia. Portanto, quem efetua um ato de consci�ncia "sabe" que � sujeito deste ato, pois � imposs�vel realizar um ato de consci�ncia sem ter consci�ncia de ser sujeito do ato.
A filosofia da consci�ncia
A descoberta da indubitabilidade do enunciado Eu penso e, por conseguinte, o reconhecimento da prioridade dos atos mentais sobre os atos que envolvem o corpo ou os objetos externos � mente � um dos mais importantes legados da filosofia cartesiana. Da indubitabilidade dos atos de consci�ncia emerge um novo "paradigma" filos�fico: a filosofia da consci�ncia.
Por "filosofia da consci�ncia" entende-se as teorias filos�ficas que afirmam a imediata e indubit�vel acessibilidade aos atos de consci�ncia pelo sujeito destes atos e o conhecimento mediato e problem�tico das realidades "extramentais". Assim, a filosofia da consci�ncia � caracterizada por um problema b�sico: a quest�o da justifica��o do saber. E por dois princ�pios: 1) o princ�pio da consci�ncia imediata e indubit�vel que o sujeito tem de seus estados mentais; e 2) o princ�pio do conhecimento mediato e, portanto, problem�tico que o sujeito tem das entidades "extramentais".
O projeto fundacional
No entanto, cada uma destas proposi��es existenciais desempenha um papel espec�fico na fundamenta��o do saber. Da proposi��o verdadeira Eu sou, pode ser extra�do o crit�rio de verdade: todas as id�ias claras e distintas s�o verdadeiras. Mas, se a proposi��o Eu sou permite a descoberta deste crit�rio, ela n�o consegue eliminar a d�vida metaf�sica, sendo apenas uma exce��o a ela. Ela n�o pode, portanto, validar o crit�rio de verdade. � necess�rio, pois, fundament�-lo. As provas da exist�ncia de Deus Veraz exercem esta fun��o.
O que importa nestas provas n�o � propriamente a exist�ncia, mas a real veracidade de Deus, pois se Deus � veraz n�o existem mais raz�es para duvidar da pr�pria raz�o humana. Com as provas da exist�ncia de Deus, Descartes assinala que s� por meio de uma refer�ncia ao Absoluto (ao Deus Veraz) � poss�vel uma supera��o definitiva do ceticismo e do solipsismo. A raz�o humana finita seria, portanto, incapaz de fundar o crit�rio de verdade e de romper com o solipsismo ao qual a d�vida metaf�sica confinara a pr�pria raz�o.
Sujeito e saber
Formulada no quadro conceitual da filosofia da consci�ncia, a fundamenta��o do saber, da verdade e da certeza caminha lado a lado com a progressiva revela��o da natureza do sujeito pensante. Com efeito, o enunciado indubit�vel Eu penso exprime inicialmente a consci�ncia que o sujeito tem de ser sujeito de seus atos de consci�ncia. Deste enunciado, � inferida a primeira proposi��o verdadeira do sistema, Eu sou pensante, que demonstra que o sujeito do ato de pensar n�o � uma mera fun��o formal do pensamento, mas � uma entidade realmente existente.
Gra�as a esta proposi��o verdadeira, � realizada a primeira etapa da refuta��o do ceticismo universal. Analisando-se, em seguida, os atos mentais do sujeito pensante, � provada a exist�ncia do Deus Veraz. O ceticismo e o solipsismo s�o, ent�o, definitivamente superados. Com a prova da exist�ncia dos corpos, que tem como premissas as proposi��es existenciais anteriores, � refutada a �ltima hip�tese c�tica: os objetos externos � consci�ncia, os corpos, existem. S� ent�o � poss�vel revelar a verdadeira natureza do sujeito pensante: ele � um composto de mente e de corpo. Os saberes que envolvem o conhecimento da uni�o do corpo e da mente podem, ent�o, ser constitu�dos.
Assim, em Descartes, as reflex�es sobre a fundamenta��o do saber est�o necessariamente conectadas �s an�lises sobre a natureza do sujeito. Embora estas duas quest�es sejam abstratamente distintas, o sistema cartesiano procurou, no entanto, demonstrar que � imposs�vel esclarecer uma delas sem esclarecer tamb�m a outra.
Os fil�sofos do s�culo 20 receberam o sistema cartesiano ora com simpatia, como � o caso de Husserl, ora com cr�ticas contundentes, pois o sistema teria engendrado numerosos equ�vocos filos�ficos. Esta parece ser a opini�o de Heidegger e de Wittgenstein. Mas talvez um sistema filos�fico deva ser avaliado n�o pelas solu��es que elaborou, mas pelo campo de pesquisa que inaugurou. Se for este o crit�rio de avalia��o, a filosofia da consci�ncia cartesiana possui uma esp�cie de perenidade, pois descobriu quest�es, temas e problemas que ser�o sempre discutidos pelos fil�sofos em qualquer �poca. Sob este aspecto, todas as filosofias p�s-cartesianas s�o de fato cartesianas.

NOTA
1. "Principia Philosophiae" (texto latino publicado pela primeira vez em 1644; a tradu��o francesa, revista e aprovada por Descartes, data de 1647) � um dos principais textos em que Descartes desenvolve n�o s� sua metaf�sica, mas a sua filosofia.

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