S�o Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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Aqueles velhos p�tios

IV�N IZQUIERDO

Me criei em Buenos Aires, uma cidade que consistia de casas com p�tios grandes. Todos os quartos abriam-se sobre eles. Nesses p�tios, � tardinha, juntavam-se as pessoas para conversar.
O pretexto podia ser um chimarr�o, um ch�, um anivers�rio ou simplesmente o dia da semana. Minha av�, por exemplo, "recebia" �s quintas-feiras. Com os anos as casas foram substitu�das por edif�cios de apartamentos, de seis ou oito andares, onde j� n�o havia mais p�tio ou, se havia, era pequeno.
Mas havia salas onde cabiam as pessoas, e o di�logo encontrava ali seu ref�gio. O di�logo ocorria naquilo que Borges chamou de "o tempo largo da Espanha", que ocupava os p�tios e as salas. Borges chegou a ser Borges criado nesses p�tios. Ao tempo da Espanha juntou-se depois o da It�lia, que tamb�m era largo, e o di�logo se enriqueceu. Os tempos de Portugal, do interior de Rio Grande ou da velha S�o Paulo s�o muito parecidos �queles. Est�o feitos do mesmo barro.
Mais tarde estudei no gin�sio e na medicina, e o tempo largo achava-se nos caf�s, onde aprendi, como diz o tango, filosofia. Os ben�volos gar�ons faziam com que os m�seros cafezinhos, que era tudo o que os estudantes podiam pagar, partilhassem conosco daquele tempo largo. O interessante � que a esse tempo correspondia um espa�o tamb�m largo. Einstein, creio, demonstrou que o tempo e o espa�o s�o da mesma laia.
Naquelas vastas e felizes dimens�es ocorriam muitas coisas, e algumas n�o t�o devagar. Existe hoje o preconceito de que as coisas de antigamente eram todas lentas. N�o � verdade.
Por exemplo, para ilustrar com uma imagem bem f�sica: n�s, as crian�as, corr�amos a toda velocidade naqueles largos p�tios durante longos per�odos. Jog�vamos esconde-esconde, pol�cia e ladr�o, futebol, tudo em alta velocidade, sem parar. Acontece que, se o tempo � largo e se o espa�o permite, se pode fazer coisas muito r�pidas. Se n�o h� tempo nem espa�o suficientes, pouco pode ser feito; bate-se nas curvas.
Nos estudos, a mesma coisa. Muitos daquela �poca fomos doutores antes dos 25 e professores antes dos 30 anos de idade. Quer dizer que naquelas longas horas de caf�, entre metaf�sica, futebol e outros papos, estud�vamos muito, bem e depressa. Keats, Beethoven, Einstein ou Kafka, em bares e caf�s de outras latitudes, criaram maravilhas antes dos 25 anos. O tempo era t�o abundante que a gente n�o o desperdi�ava.
Algu�m viu alguma vez um rico jogando fora seu dinheiro no cassino? N�o; quem joga o dinheiro fora � quem tem pouco, na tentativa ilus�ria de ver se consegue multiplic�-lo. Quem tem muito guarda e aplica. Pois isso era o que faz�amos com nosso tempo largo: cuid�-lo e multiplic�-lo.
Hoje vivemos o mundo da falsa velocidade. Sumiram o tempo e o espa�o. Um s�mbolo horripilante � a televis�o repetindo at� a n�usea a �ltima curva do Senna, em que faltou tempo e espa�o a seu carro defeituoso. Nunca mostram suas ultrapassagens nas curvas de Detroit ou Montecarlo, nas quais Senna se fez grande correndo 1 km/h abaixo do limite, usando seu tempo e seu espa�o ao m�ximo, como s� Fangio fez antes dele.
Os sintomas da perda de nosso tempo largo s�o v�rios. Um, que passamos mais de 7 horas di�rias vivendo vaziamente, frente � televis�o, vidas vic�rias, bidimensionais, sem tempo nem espa�o, vidas que n�o s�o nossas. Outro sintoma � que conversamos pouco.
Onde est� hoje aquele tempo largo da Espanha, de Portugal, da It�lia, de antigamente? Em algum outro lado. N�o interessa quem o levou nem como foi parar l�. Interessa que j� n�o est� mais dispon�vel nos p�tios, nas salas, nos caf�s, em lugar nenhum. As pessoas correm desesperadas para fazer de conta que o tempo e o espa�o ainda est�o a�, mas n�o � verdade.
Da� a depress�o, os infartos, o �lcool, drogas. Na depress�o percebe-se que o tempo est� acabando. No infarto sente-se que acabou de vez. Com o �lcool ou a maconha cria-se a ilus�o de que o tempo e o espa�o ainda existem; com a hero�na, de que existem e s�o nossos; com a coca�na, de que podemos correr num espa�o que n�o existe.
Nos sonhos � comum sentir que atravessamos um t�nel ou uma porta e entramos num lugar inesperadamente maior, num pal�cio por exemplo. Nos pesadelos, ao contr�rio. Quem sabe o m�todo para passar para o outro lado, para aquele onde se escondeu o tempo largo que deste lado n�o est�, seja o dos sonhos.
� preciso cavar t�neis e abrir portas. O amor, claro, � quem mais chaves fornece para abrir portas e unhas e dentes para cavar t�neis. �s vezes s� o amor n�o � suficiente; este mundo de hoje � duro e se resiste com viol�ncia, n�o admite que cavemos t�neis ou abramos a porta de sa�da. Ent�o temos que pensar em outros meios al�m do amor.
Na sutileza melhor do que a for�a, j� que somos fracos. Na ironia mais do que o sarcasmo, j� que este pode ser combatido e aquela n�o. Na dissimula��o mais do que a nega��o, j� que esta elimina a pr�pria raz�o de nossa busca. Quem alguma vez amou j� conhece tudo isso.
A arte de cavar ou abrir tempo virou especialidade rara e dif�cil. Se aprende devagar e n�o sem derrotas e sem dor. Mas devemos insistir na pr�tica dessa arte, pois s� sobreviver sem tempo e sem espa�o, ou fora deles, n�o vale a pena.

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