S�o Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Pr�ximo Texto | �ndice

Edi��o comemorativa de 'Ma�ra' traz texto de Antonio Candido

"Ma�ra", revela uma not�vel arte de tecel�o de palavras

ANTONIO CANDIDO
"MA�RA", REVELA UMA NOT�VEL ARTE DE TECEL�O DE PALAVRAS

� curioso como um dos homens mais trepidantes do Brasil tenha escrito um livro vagaroso, de compasso medido, que precisa ser lido lentamente, n�o s� porque a mat�ria � densa, intrincada, cheia de dados sobre a vida e a mitologia ind�genas; n�o s� porque os desvios e afluentes se multiplicam -mas porque a maestria estil�stica segura o andar do leitor, dificulta a leitura superficial e cria a cada linha um interesse que precisa ser satisfeito pelo cuidado da percep��o e da aten��o.
"Ma�ra" � desafogado, mas cheio de estranha solenidade. Desafogado, porque a linguagem nada tem de convencional e mant�m uma dist�ncia bem calculada entre a naturalidade da fala e os requisitos da escrita. E a solenidade n�o vem do fato de ser solene, no sentido corrente, mas porque o autor infunde na mat�ria narrada um fervor que empresta certo toque de relev�ncia a cada p�gina. Para penetrar bem nesse universo caudaloso o leitor precisa, portanto, ir devagar, acompanhando o ritmo lento e complexo segundo o qual o livro foi constru�do. "Coisa bonita se faz sem pressa, devagar", diz o personagem Isa�as Mairum, Av� de seu nome original, �ndio civilizado e instru�do que � genealogicamente o "tuxauar�", isto �, herdeiro da chefia de guerra dos mairuns por via matrilinear.
No tempo em que lia certos antrop�logos que, como Darcy Ribeiro, escrevem bem, eu especulava sobre o que aconteceria se eles criassem fic��es a partir dos seus relatos e an�lises, para extrair da realidade aquilo que s� a imagina��o perfaz. Pensava que Evans-Pritchard bem poderia fazer narrativas imagin�rias e sedutoras sobre a transum�ncia dos Nuer com o seu gado, ou sobre os meandros da feiti�aria entre os Azande. Pensava na admir�vel mat�ria ficcional que poderia sair, na pena de Malinowski, das aventuras dos argonautas trobriandeses. Sem falar no que Nadel seria capaz de extrair da etiqueta complicada e rigorosa da sua Biz�ncio nigeriana. Digo isso, porque senti, lendo "Ma�ra", que Darcy Ribeiro tinha correspondido �s minhas vagas esperan�as de outro tempo, passando do trabalho de campo e das s�nteses interpretativas para a transfigura��o ficcional do �ndio brasileiro. Mas de modo muito pr�prio.
Muito pr�prio -primeiro porque a amplitude e profundidade do seu conhecimento etnol�gico � sem equivalente nos que abordaram em literatura a vida do �ndio. Em seguida, porque n�o se concentrou no universo tribal e preferiu, com plena consci�ncia da situa��o presente, estabelecer o relacionamento deste com o mundo dito civilizado, que o cerca e destr�i. Mais ainda: porque figurou o encontro de culturas na pr�pria personalidade de um �ndio, iniciado nos saberes do branco, mas preso de tal maneira �s origens, que voltou � sua aldeia, na sua selva, para viver uma exist�ncia incompleta, diminu�da, puxada para os dois lados. O seu Isa�as Mairum n�o suporta o encontro sem solu��o dos dois mundos, como foi tamb�m o caso do bororo Tiago Marques Aipobureu (referido de passagem num momento estrat�gico deste livro), estudado por Herbert Baldus e Florestan Fernandes.
O seu contrapeso, que � tamb�m a sua contraprova, � o personagem Alma, uma mulher do Rio, insatisfeita e contradit�ria, que passa de drogada e outras coisas a novi�a religiosa e acaba fugindo de si mesma numa aventura que, no come�o, parece obedi�ncia � voca��o, no projetado trabalho entre os �ndios, mas acaba tendo vontade de dissolver-se no mundo diferente destes. Numa esp�cie de inicia��o pelo avesso, ela se introduz na tribo e desenvolve uma sexualidade marcada pelo desespero, entregando-se de maneira desbragada a quem a quisesse, como se a liberdade prevista no comportamento ind�gena fosse uma redefini��o transgressiva da sua sede de viver.
Os destinos cruzados de Isa�as e Alma formam a subst�ncia da linha narrativa central e mostram como "Ma�ra" � o livro de um antrop�logo que assume plenamente a condi��o de escritor, ao fundir o conhecimento da vida primitiva com a experi�ncia da civiliza��o, combinando os �ngulos de vis�o dos dois mundos, sem qualquer exotismo pitoresco. "Ma�ra" foi produzido por um homem que conhece a fundo a sociedade do �ndio e a sociedade do branco, que sabe qual � o resultado catastr�fico do seu encontro, mas que supera a tenta��o de mostrar a este como espet�culo, porque o seu alvo � uma vis�o em profundidade. Esta assegura o poder de convic��o do livro e � devida n�o apenas ao saber etnol�gico, mas tamb�m � t�cnica narrativa, escolhida e praticada com firme discernimento.
Enquanto antrop�logo, Darcy Ribeiro p�e em movimento tudo o que conhece por observa��o direta e por informa��o a respeito da vida ind�gena e dos efeitos de seu contato com o branco. Gra�as a isto, penetra fundo no universo do �ndio, esposando o seu modo de ver e sentir, falando a partir da sua maneira de falar, numa contamina��o fecunda entre observador e coisa observada, que lhe permite, por exemplo, descrever a vida do corpo com uma naturalidade que pareceria grosseira sem essa compenetra��o. � como se, instalado na intimidade do �ndio, o narrador perdesse (enquanto dura a narrativa) os seus valores pr�prios e adquirisse os dele, fazendo o leitor aceitar como necess�ria a maneira desabotoada de falar do sexo, das fun��es fisiol�gicas, da alimenta��o. O curioso � que esta atitude reflui sobre ele pr�prio e justifica a sua maneira igualmente sem peias de abordar a sexualidade do civilizado. Do mesmo modo, as normas da organiza��o social do �ndio aparecem, n�o como informes que um civilizado passa exteriormente ao leitor, mas como verdades que anulam o afastamento entre ele e o primitivo, adquirindo uma esp�cie de validade essencial.
Passando � natureza do livro, uma observa��o inicial: se pudermos dizer que "Ma�ra" � a seu modo um romance de tipo indianista, isto s� ter� sentido se for para mostrar a sua originalidade. N�o h� mais nele a redu��o l�rica ou her�ica de Jos� de Alencar, que fala dos �ndios, e por eles, com a sua plena voz de civilizado que os quer embelezar. N�o h� tampouco a voz cheia de sarcasmo e humor com que M�rio de Andrade desenrola a s�tira de "Macuna�ma". H� diversas vozes que instituem a narrativa, cada uma conforme o seu �ngulo. Entre eles, o �ngulo triste e ominoso de Isa�as, o �ngulo crispado de Alma, procurando desesperadamente ingressar no mundo do �ndio, � busca de uma imposs�vel reden��o; mas sobretudo o �ngulo pr�prio do narrador, que rege o livro e � capaz de ver tanto como �ndio quanto como branco. Gra�as a ele, o leitor se sente iniciado na vida cerimonial dos mairuns, nos seus conceitos, na naturalidade com que s�o mostradas as suas fun��es org�nicas, na rever�ncia cheia de familiaridade com que s�o representados os seus deuses e os seres sobrenaturais, t�o pr�ximos do homem, que de repente parecem tamb�m falar como ele, devido ao malabarismo com que o narrador penetra na sua indevass�vel realidade. A multiplicidade dos pontos de vista permite a Darcy Ribeiro desdobrar o universo do seu livro em tr�s setores que se interpenetram: o do �ndio, o do branco, o dos seres sobrenaturais, que parecem participar efetivamente das a��es e do destino de cada um.
Al�m de tais expedientes, � a t�cnica narrativa propriamente dita que, somada ao grande conhecimento do universo descrito, assegura a convic��o do leitor. Inclusive porque em "Ma�ra" a voz narrativa central n�o � a do homem Darcy Ribeiro, como num livro de antropologia, mas a do narrador que ele criou e vem de dentro da fabula��o. Ele pr�prio parece ter querido ressaltar esta distin��o fundamental, pois h� um momento importante, situado exatamente no meio do livro, no qual quem fala n�o � o narrador: � claramente ele. Refiro-me ao cap�tulo "Egosum", cujo t�tulo indica que quem fala agora � o inventor da voz narrativa -como, em certos quadros do passado, o pintor figurava discretamente a si mesmo, perdido num �ngulo entre soldados, cortes�os, doadores, para marcar a presen�a do criador no concerto das suas criaturas.
Darcy Ribeiro soube, portanto, escolher os bons crit�rios para fundir o real document�rio, o socialmente v�lido e o transcendente, por meio do ficcionalmente expressivo. Sob este aspecto, "Ma�ra" revela uma not�vel arte de tecel�o -tecel�o de palavras, frequentemente animadas pelo sopro da poesia, mas sobretudo tecel�o de linhas narrativas, as tr�s mencionadas, exprimindo a vida tribal dos mairuns, os seus mitos, o contato entre eles e os civilizados, com e sem aspas. A primeira linha talvez seja, pela sua pr�pria natureza, a mais homog�nea e porventura a mais bela. Ficar�o certamente na literatura brasileira coisas como as sequ�ncias da morte "por etapas" do velho tuxaua Anac�, chefe guerreiro, membro do cl� Jaguar, desde o seu passamento at� a limpeza, adorno e entesouramento dos ossos, enquanto o cheiro da sua decomposi��o domina a aldeia e faz cada um participar minuto por minuto do que est� ocorrendo.
A linha tem�tica do civilizado (tamb�m pela sua natureza) � a mais complexa, pondo em jogo sequ�ncias paralelas que envolvem autoridades federais, militares, policiais, mission�rios, beatos, regat�es e toda gente perdida no mundo de beira-rio.
O amarrilho da narrativa � o cap�tulo inicial, que conta o encontro do cad�ver de uma mulher branca (Alma), aparentemente morta ao dar � luz g�meos igualmente mortos, numa praia de rio amaz�nico. A partir da� o enredo se abre e se tran�a, at� desfechar na explica��o do fato, depois de uma multiplica��o de sequ�ncias narrativas que convergem. Convergem inclusive num admir�vel cap�tulo final, onde as vozes se misturam sem identifica��o ostensiva, mas percept�vel, como se estiv�ssemos dentro da corrente de consci�ncia, n�o de um indiv�duo, mas de uma coletividade d�spar, em que se misturam brancos e �ndios na sua humanidade comum. � como se o mon�logo autoral do cap�tulo "Egosum" e a polifonia do cap�tulo final, "Indez", representassem os dois p�los deste belo livro: a singularidade de cada personagem e o destino cruzado de todos, no vagalh�o dos mundos que se cruzam.

Este texto faz parte da fortuna cr�tica que acompanhar� a edi��o comemorativa dos 30 anos do romance "Ma�ra", de Darcy Ribeiro, a ser lan�ada no fim deste m�s pela editora Record

Texto Anterior: Entidade quer alterar a defini��o de livro
Pr�ximo Texto: Paul Val�ry desafia as vangl�rias do mundo intelectual
�ndice


Clique aqui para deixar coment�rios e sugest�es para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manh� S/A. Todos os direitos reservados. � proibida a reprodu��o do conte�do desta p�gina em qualquer meio de comunica��o, eletr�nico ou impresso, sem autoriza��o escrita da Folhapress.