S�o Paulo, sexta-feira, 10 de junho de 1994
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Welles filma o Brasil com olhos de g�nio

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Apalavra "g�nio" n�o � f�cil de empregar. � �s vezes usada a torto e a direito, perdendo o significado cabal, profundo que deveria ter. Ou ent�o se aplica o termo de modo previs�vel demais: Einstein era um g�nio, Beethoven era um g�nio, e ficamos no campo das constata��es banais.
Vendo "Tudo � Verdade" ("It's All True"), em cartaz a partir de hoje no Espa�o Banco Nacional, s� posso recair em uma banalidade. Orson Welles era um g�nio. O filme recupera um document�rio mudo de Welles sobre a vida dos jangadeiros no Cear�.
Trata-se de um filme genial.
E aqui interv�m o problema b�sico que h� no emprego desse termo, "genial". O que se espera da cr�tica � que prove "por que" o filme � genial, "por que" Orson Welles era um g�nio. Tamb�m � comum a atitude contr�ria. Voc� fala mal de determinado autor, e alguns leitores reclamam: "Ele n�o disse por que tal autor � ruim".
Arrisco uma pequena teoria sobre as fun��es da cr�tica, ou melhor, sobre os tipos de cr�tica. H�, de fato, uma cr�tica interessada nos "porqu�s" do julgamento de valor. Tal artista, Vel�zquez por exemplo, era genial "porque" realizou tais e tais descobertas, porque foi o primeiro a fazer isto ou aquilo.
O caso de Vel�zquez � conhecido, porque foi o primeiro, historicamente, a mostrar o gesto, a marca do pincel de pintura, renunciando � pura ilus�o polida da verossimilhan�a. Vemos, num quadro seu, n�o as rendas e babados de um vestido, mas os golpes e tra�os de tinta branca sobre a tela.
Em casos como esse, a cr�tica dos "porqu�s" se d� bem. Tal artista teve determinada import�ncia hist�rica, foi influente nisto ou naquilo, refez e inovou toda a tradi��o.
Mas afirma��es desse tipo n�o esgotam tudo o que a cr�tica tem a dizer sobre uma obra de arte. Fosse esse o caso, seria apenas uma quest�o historiogr�fica.
Muitas vezes, importa menos dizer "por que" tal artista � bom, importa menos provar "judicialmente" no tribunal da hist�ria o seu valor, e mais dizer, ou compartilhar, a impress�o de "como" ele � bom.
No caso deste filme de Orson Welles, n�o tenho muito como "provar" de que modo, "porque" se trata de uma obra genial. S� posso falar "como" o filme � genial.
Em primeiro lugar, s� um cego n�o notar� a extrema beleza das imagens tiradas por Orson Welles da vida dos jangadeiros. N�o sei porque dizer que isto � uma quest�o subjetiva �"alguns podem achar bonito, outros n�o". Ao contr�rio, beleza � uma coisa bem objetiva; se n�o � un�nime, � bem generalizada a id�ia de que o Rio de Janeiro � mais bonito do que S�o Paulo, ou que Bruna Lombardi � mais bonita do que o Costinha.
Beleza fotogr�fica n�o �, entretanto, o principal do filme. Fotografias bel�ssimas, podemos encontrar num livro de Cartier-Bresson ou de Sebasti�o Salgado. N�o cito estes dois nomes por acaso.
O que Orson Welles fez, em seu document�rio sobre a vida dos jangadeiros, foi p�r em movimento imagens e cenas que, de certo modo, re�nem ou sintetizam aquilo que mais nos encanta na obra destes dois fot�grafos.
O humanismo popular de Cartier-Bresson �sua capacidade de captar os instantes de felicidade espont�nea, dois garotos portando bandeira ou dois amantes se beijando em uma rua qualquer, como se ser "do povo" j� fosse uma promessa de contentamento, de plenitude humana� se junta � atitude cr�tica de Sebasti�o Salgado, sempre interessado em mostrar a viol�ncia do trabalho sobre os corpos oper�rios, a dura epop�ia do proletariado, em relevos dignos de Michelangelo.
O document�rio de Orson Welles junta as duas coisas. A aspereza do trabalho nas jangadas n�o aparece, no filme, como pura den�ncia da aliena��o e da explora��o do homem pelo homem (embora estes aspectos estejam presentes). H� tamb�m o elogio de uma beleza simples, nada hollywoodiana, em cada rosto que sofre e que sorri.
Fosse um filme de pura den�ncia sobre as condi��es de vida dos jangadeiros, sair�amos revoltados, sem d�vida, e sair�amos odiando os "exploradores do povo" �mas sem simpatizar muito com as v�timas dessa explora��o.
O olhar de Orson Welles (express�o meio besta, essa, "o olhar" de fulano) � menos engajado, talvez, e mais humanista: mais Cartier-Bresson do que Sebasti�o Salgado quando nos mostra o extraordin�rio tipo de beleza cearense de uma mocinha que � uma das protagonistas do document�rio.
Tamb�m os velhos, os rostos marcados pelas condi��es sociais dos jangadeiros surgem n�o apenas como puro documento sociol�gico, mas como sinais de grandeza da ra�a humana. Aqui, estamos mais pr�ximos de Sebasti�o Salgado.
Mas, at� agora, estive falando apenas da fotografia do filme. O que impressiona, neste document�rio, � a extrema variedade das angula��es de c�mera, os contrastes, o ritmo, a movimenta��o das imagens. O "genial" da coisa toda est� na varia��o das cenas em si mesmas bel�ssimas.
Welles filma um rosto pela metade, fixa uma imagem no extremo de baixo, no extremo do alto; p�e em primeiro plano uma figura parada, contra o movimento do fundo, ou inverte, pondo tudo parado no fundo contra um movimento r�pido, uma passagem veloz de figura no primeiro plano.
Tudo se resumiria a um enorme virtuosismo t�cnico, a uma ineg�vel sensibilidade visual se o filme de Orson Welles fosse admir�vel apenas pela beleza das fotos, pela beleza dos rostos, pela beleza dos movimentos.
Desconfio que h� algo al�m disso, mais dif�cil de definir.
Um americano qualquer teria, por certo, a tend�ncia de filmar o Brasil em movimentos mais folcl�ricos, mais fotog�nicos. Um brasileiro tende, sem d�vida, a filmar a realidade nacional de um ponto de vista ao mesmo tempo cr�tico e impotente, isto �, hist�rico: fixa-se no horror da sociedade, segue o messianismo glauberiano, denuncia sem parar, interessa-se pelo feio, n�o pelo bonito.
Orson Welles filmou o Brasil de forma diferente. Foi ao mesmo tempo esteta e cr�tico social. N�o filmou o Brasil com os olhos de um americano, n�o filmou o Brasil com os olhos de um brasileiro. Filmou o Brasil com olhos de um g�nio. Melhor do que isso. N�o foi um g�nio, foi um homem.
Simpatia humana, horror humano, grandeza humana, amor humano (isso existe), � o que vemos neste filme solit�rio sem paternalismo, cr�tico sem crisma��o, doce e amargo, imenso e puro, belo e estranho como o mar; como o ser humano tamb�m.

LEIA MAIS sobre "Tudo � Verdade" � p�g. 5-11.

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