Genuína morava em Minas Gerais e queria ser atriz quando crescesse. Só que a vida a levou por outros caminhos, e ela se casou, teve cinco filhos e não conseguiu seguir a profissão que sonhava. Um dia, Genuína ficou doente. Já velhinha, ela começou a se esquecer das coisas e das pessoas, mas havia uma coisa que não saía de sua cabeça: Genuína achava que tinha que ensaiar, correr para o teatro e subir no palco para se apresentar.
Sara Antunes é neta de Genuína, e viu isso tudo acontecer dentro de casa. Sua avó desenvolveu a doença de Alzheimer, e foi por causa dela que sua memória aos poucos se desfez. "Ela se esqueceu das coisas da vida, mas se lembrou do desejo que tinha de ser atriz. E eu quis falar sobre essa minha avó, fazer uma homenagem a ela, que me ensinou tanto", conta Sara.
O tributo a dona Genuína, criado e dirigido por sua neta, estreou nesta quinta (28) no Teatro do SESI, em São Paulo, e se chama "Voz de Vó". Na história, uma avó que também tem Alzheimer conta com a ajuda de seus netos para buscar suas memórias perdidas.
"Ela não reconhece a própria casa e quer ir para uma casa que ela acha que é a dela, mas que não é aquela onde ela mora. Ela quer reencontrar as pessoas que já partiram, como seu marido, o José, a sua mãe e o seu pai, e vive como se o que ela deseja fosse a realidade", diz Clarisse Derzié Luz, a atriz que vive a Vó Genuína da ficção.
Eu aprendi que quando alguém tá com Alzheimer você tem que tratar essa pessoa como se ela fosse uma criança mesmo. Você canta música, brinca, se diverte. Acho que os netos da peça têm um carinho especial pela Vó e sabem cuidar muito bem dela
Se a diretora se inspirou em sua avó na vida real para criar o espetáculo, Clarisse se inspirou em seu pai, que também foi diagnosticado com Alzheimer um tempo atrás. "Apesar do susto da doença e da dor que isso provoca, porque a pessoa passa a ter um comportamento completamente diferente do que ela tinha, existe uma coisa lúdica e quase infantil nas pessoas que são acometidas pelo Alzheimer", acredita.
"A gente ria muito com ele. Ele era uma pessoa muito alegre a vida inteira, contava muitas histórias e isso ficou mais forte com a doença. Aí a gente acompanhava e dava espaço para ele ser do jeito que ele estava. Foi uma coisa leve, e não pesada."
Benjamin O., 10 anos, é um dos atores que vivem um dos netos da Vó na peça. Ele não conhece ninguém com Alzheimer na vida real. "Mas eu já sabia que quando uma pessoa fica com Alzheimer ela perde a memória", afirma.
"Eu aprendi que quando alguém tá com Alzheimer você tem que tratar essa pessoa como se ela fosse uma criança mesmo. Você canta música, brinca, se diverte. Acho que os netos da peça têm um carinho especial pela Vó e sabem cuidar muito bem dela."
O médico Ivan Okamoto, neurologista do Hospital Israelita Albert Einstein, explica que a doença de Alzheimer é como se fosse "um machucado no cérebro". "Acontece só com algumas pessoas, não é todo mundo que vai ter. A doença faz com que o paciente não consiga gravar coisas novas na memória", diz.
"No começo da doença, a pessoa parece normal, como sempre foi. Com a evolução desse 'machucado', ela pode ir esquecendo nomes e perdendo a linguagem. Ela sabe o que quer falar mas não acha a palavra. Também pode ficar frustrada com tudo isso e se rebelar, porque com a doença ela vai precisar viver com muita gente mandando nela."
Quem convive com um idoso que está ficando doente vai perceber, por exemplo, que essa pessoa vai perder a capacidade de fazer coisas que previamente sabia fazer muito bem. Pode ser uma receita de bolo que se fazia de cabeça e agora é esquecida, ou mesmo o forno ligado que queima esse bolo —são estes os primeiros sinais do Alzheimer, que costuma atingir pessoas com cerca de 65 anos.
Tudo isso acontece por um acúmulo de proteínas no cérebro —algumas substâncias que deveriam ser "jogadas fora" acabam ficando por ali e fazendo mal para o órgão. "O Alzheimer é algo diferente de ficar velhinho. Ficar velho é ser como um computador antigo, que retém informações, só que de um jeito lento. Na doença, é como se o HD estivesse corrompido", compara.
Ela [neta de paciente com Alzheimer] falou que a avó podia até não saber quem ela era, mas que ela, a neta, sabia muito bem quem a avó era
Seu Lourenço, bisavô dos meninos Hugo S. L., 6 anos, e Vitor, 9 anos, foi diagnosticado com Alzheimer há cinco anos. De um senhor bastante ativo e trabalhador em sua chácara, no Distrito Federal, ele passou a um idoso debilitado. Atualmente, não reconhece mais a maioria das pessoas. Mas, assim como as Genuínas da vida real e da nova peça de teatro, ele também fala sobre muitas coisas do passado.
"Ele fala do boi, da porteira. Teve até um dia que quis abrir o portão à noite e sair pra rua", conta Aline, mãe dos meninos. "Mas o amor continua o mesmo. Não é porque ele tá dodói e esquecido que mudou o sentimento."
O neurologista Okamoto conta que, um dia, ouviu em seu consultório o relato de uma adolescente, neta de uma mulher com doença de Alzheimer, que o emocionou. "Ela falou que a avó podia até não saber quem ela era, mas que ela, a neta, sabia muito bem quem a avó era", lembra.
Para ele, o carinho dos netos e bisnetos com as pessoas acometidas pelo problema é fundamental para a qualidade de vida desses pacientes. É o que ele chama de "netoterapia". "Quem convive com o amor e a proximidade dos netos precisa muito menos de remédio, é algo comprovado", diz.
A atriz Clarisse acredita que todo mundo que convive com um doente com Alzheimer precisa buscar informação. "Existem cursos, livros e filmes que esclarecem sobre a doença e ajudam a pessoa a lidar com esses doentes", afirma.
"Acho que esse é o melhor caminho, além de entrar na 'viagem' deles e permitir que eles sejam como eles estão se apresentando, com toda essa magia, essa poesia, essa realidade paralela. Tenha paciência, calma, e você acaba se divertindo com eles."
TODO MUNDO LÊ JUNTO
Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança
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