Publifolha
24/08/2007 - 18h49

Entenda por que Lacan contribuiu para a compreens�o da teoria social; leia cap�tulo

da Folha Online

O psicanalista Jacques Lacan (1901-1981) tinha tudo para ser esquecido, por se tratar de uma autor reconhecidamente dif�cil, de poucos textos, redigidos em estilo el�ptico. No entanto, suas id�ias tornaram-se ponto de passagem obrigat�rio n�o apenas para os interessados na cl�nica psicanal�tica, mas tamb�m para quem pretende compreender a filosofia, a teoria social, a est�tica e a cr�tica da cultura no in�cio do s�culo 21. Leia abaixo a introdu��o do livro.

Divulga��o
"Lacan" � mais um volume da s�rie "Folha Explica", da *Publifolha*
"Lacan" � mais um volume da s�rie "Folha Explica", da Publifolha

O livro "Lacan" � mais um volume da s�rie "Folha Explica." Ele pode ser encontrado nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

Com um diploma de m�dico-legista nas m�os, Lacan toma duas decis�es quase simult�neas: inicia uma an�lise did�tica que lhe permitir� ser psicanalista e segue os cursos do fil�sofo russo Alexandre Koj�ve (1902- 1968) sobre a Fenomenologia do Esp�rito, de Hegel (1770-1831). Em 1975, quando comentou a reedi��o de sua tese, Lacan dir� que resistiu durante tanto tempo � sua republica��o: "porque a psicose paran�ica e a personalidade n�o t�m rela��es, pela simples raz�o de que s�o a mesma coisa".

Como o nome indica, a s�rie "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e faz�-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condi��es n�o s� para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunst�ncias do pa�s.

O autor de "Lacan", Vladimir Safatle, � professor do Departamento de Filosofia da Universidade de S�o Paulo (USP) e tamb�m autor do livro "A Paix�o do Negativo: Lacan e a Dial�tica".

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Introdu��o

"Bastam dez anos para que o que escrevo se torne claro a todos." Com essas palavras, Jacques Lacan (1901-81) encerrava em 1971 uma rara entrevista dada � televis�o francesa. Mais de 35 anos se passaram e n�o podemos dizer que sua premoni��o tenha se realizado, embora ela contenha algo de verdadeiro. Pois mesmo que Lacan ainda seja um autor cujo estilo el�ptico desconcerta e afasta, � certo que sua import�ncia intelectual foi paulatinamente sendo reconhecida.

N�o se trata apenas de insistir aqui na relev�ncia de suas posi��es no debate sobre a cl�nica psicanal�tica nas �ltimas d�cadas. Trata-se de sublinhar como Lacan tamb�m se tornou um interlocutor privilegiado em reflex�es contempor�neas sobre filosofia, teoria liter�ria, cr�tica de arte, pol�tica e teoria social. Neste sentido, ele talvez tenha sido o �nico psicanalista, juntamente com Sigmund Freud (1856-1939), capaz de transformar sua obra em passagem obrigat�ria para aqueles cujas preocupa��es n�o se restringem apenas � cl�nica, mas dizem respeito a um campo amplo de produ��es socioculturais vinculadas aos modos de auto compreens�o do presente com suas expectativas e impasses.

No entanto, isto s� foi poss�vel porque sua no��o de cl�nica sempre guardou uma s�rie de peculiaridades, mesmo conservando os dois princ�pios fundamentais para a constitui��o da pr�xis anal�tica desde Freud, a saber, ser radicalmente desmedicalizada e reduzir o campo de interven��o � dimens�o da rela��o psicanalista-paciente. Come�ar lembrando alguns pressupostos da cl�nica lacaniana talvez seja uma boa estrat�gia para introduzir o sentido de sua experi�ncia intelectual, assim como explicar as causas de sua ampla recep��o. Uma estrat�gia ainda mais relevante se levarmos em conta que vivemos em uma �poca que assiste sucessivas tentativas de desqualifica��o pura e simples da racionalidade da cl�nica psicanal�tica.

A partir dos anos 80 e principalmente depois da d�cada de 1990, parecia consensual a no��o de que a psican�lise entrara em "crise". Ultrapassada pelo avan�o de novas gera��es de antidepressivos, ansiol�ticos, neurol�pticos e afins, a psican�lise foi vista por muitos como uma pr�tica terap�utica longa, cara, com resultados duvidosos e sem fundamenta��o epistemol�gica clara. Muitas vezes, psicanalistas foram descritos como irrespons�veis por n�o compreenderem, por exemplo, que patologias como ansiedade e depress�o seriam resultados de dist�rbios org�nicos e nada teriam a ver com no��es "fluidas" como "posi��o subjetiva frente ao desejo".

Por sua vez, a insist�ncia em continuar operando com grandes estruturas nosogr�ficas (relativas � descri��o ou explica��o das doen�as), como histeria, neurose, pervers�o ou melancolia, parecia resultado de um autismo conceitual que impedia a psican�lise de compreender os avan�os do DSM III na cataloga��o cient�fica das ditas afec��es mentais com suas "s�ndromes" e "transtornos" relacionados a �rg�os ou fun��es mentais espec�ficos.

Nesse contexto, a no��o de cura de afec��es e patologias mentais parecia enfim encontrar um solo seguro. O desenvolvimento das ci�ncias cognitivas, em especial das neuroci�ncias, teria permitido certa redu��o materialista capaz de demonstrar como todo estado mental (cren�as, desejos, sentimentos etc.) seria apenas uma maneira "metaf�rica" de descrever estados cerebrais (configura��es neuronais) cuja realidade � f�sica. Com isso, estavam abertas as portas para que a pr�pria no��o de doen�a mental pudesse ser tratada como dist�rbio fisiologicamente localiz�vel, ou seja, como aquilo que se submete diretamente � medicaliza��o.

A cl�nica, por ter sua racionalidade submetida a uma fisiologia elaborada, poderia, a partir de ent�o, aparecer como o setor aplicado de uma farmacologia. Lacan, desde sua tese de doutorado em psiquiatria, de 1932, insistia na inadequa��o de perspectivas fundadas nessas redu��es materialistas dos fen�menos mentais. � a consci�ncia dessa inadequa��o que o levar� a assumir a carreira de psicanalista.

Tal consci�ncia o levar� tamb�m a tentar reconstruir os padr�es fundamentais de racionalidade das pr�ticas cl�nicas, atrav�s da defesa de um conceito de sujeito n�o redut�vel a qualquer forma de materialismo neuronal. Ou seja, quando Lacan decide-se pela psican�lise, logo ap�s a defesa de sua tese em psiquiatria, ele j� tem um problema armado que, a partir de ent�o, guiar� sua experi�ncia intelectual. Um problema que guarda estranha atualidade, se levarmos em conta os desenvolvimentos posteriores da psiquiatria em dire��o a uma reconstitui��o de suas pr�ticas a partir da farmacologia.

� verdade que a cl�nica e a teoria lacanianas ser�o radicalmente modificadas ao longo dos anos. Mas nada entenderemos do sentido dessas modifica��es se n�o tivermos uma no��o clara do processo de desenvolvimento do pensamento lacaniano desde seu in�cio. Assim, vale a pena descrever esses primeiros passos, a fim de identificar a raz�o pela qual suas reflex�es cl�nicas se transformaram em refer�ncia maior para as estrat�gias de autocompreens�o do presente. Tais considera��es servem ainda como resposta � quest�o sobre como come�ar a ler sua obra. Por mais estranho que possa parecer, devemos come�ar a ler Lacan pelo come�o.

Nada melhor do que seguir o desenvolvimento cronol�gico de sua experi�ncia intelectual a fim de determinar o processo de forma��o de seus conceitos e problemas. Embora sua obra v� modi - ficando paulatinamente o campo de interlocu��es, as estrat�gias de problematiza��o e o estilo de sua escrita, � ineg�vel o esfor�o lacaniano em integrar desenvolvimentos recentes de seu pensamento a elabora��es mais antigas. Esse � um ponto importante, porque a recorr�ncia de certas quest�es � o que d� unidade a uma verdadeira experi�ncia intelectual. Nesse sentido, devemos sempre nos perguntar: quais s�o as quest�es fundamentais que animam a trajet�ria lacaniana? Uma delas, sem d�vida, � a cr�tica � aplica��o de um materialismo reducionista �s cl�nicas dos fatos mentais.

"Lacan"
Autor: Vladimir Safatle
Editora: Publifolha
P�ginas: 96
Quanto: R$ 18,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

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