Livraria da Folha

 
05/11/2010 - 09h02

Leia trecho de "Leite Derramado", vencedor como melhor fic��o do 52� Pr�mio Jabuti

da Livraria da Folha

Fotomontagem Folha Online
Chico venceu Jabuti de melhor fic��o com "Leite Derramado"
Chico venceu Jabuti de melhor fic��o com "Leite Derramado"

Nesta noite de quinta-feira, (4), a CBL (C�mara do Livro) anunciou os grandes vencedores do Pr�mio Jabuti 2010.

"Leite Derramado", quarto romance do compositor e escritor Chico Buarque, foi escolhido como fic��o do ano pelo juri oficial e pelo popular.

A escolha compensa o segundo lugar obtido na categoria melhor romance do mesmo pr�mio, divulgado no dia primeiro de outubro, quando o volume "perdeu" para "Se Eu Fechar os Olhos Agora", de Edney Silvestre.

A obra de Chico descreve de forma elegante e divertida as reminisc�ncias de um velho moribundo que relembra os antigos anos de gl�ria da saga de sua fam�lia, os Assump��o, cuja superf�cie de nobreza pouco esconde a m� �ndole do cl�.

Em outubro de 2009, a revista "Bravo!" anunciou "Leite Derramado" como o "livro do ano". O t�tulo concorria com pesos-pesados como "O Filho da M�e", de Bernardo Carvalho, e "�", de Nuno Ramos.

Leia trecho.

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Arte
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Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz inf�ncia, l� na raiz da serra. Voc� vai usar o vestido e o v�u da minha m�e, e n�o falo assim por estar sentimental, n�o � por causa da morfina. Voc� vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha fam�lia. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda n�o houver luz el�trica, providenciarei um gerador para voc� ver televis�o. Vai ter tamb�m ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. N�o sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela j� era de uma nova gera��o e n�o tinha a austeridade da minha m�e. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de Copacabana. Mas nosso chal� em Copacabana j� veio abaixo, e de qualquer forma eu n�o moraria com voc� na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e l� vai fuma�a. Na fazenda voc� tratar� de mim e de mais ningu�m, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos �rvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu av�. Mas se voc� n�o gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poder�amos morar em Botafogo, no casar�o constru�do por meu pai. Ali h� quartos enormes, banheiros de m�rmore com bid�s, v�rios sal�es com espelhos venezianos, est�tuas, p�-direito monumental e telhas de ard�sia importadas da Fran�a. H� palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Bras�lia. Os dinamarqueses me compraram o casar�o a pre�o de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanh� eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeir�o de �gua pot�vel, talvez possa reaver o casar�o de Botafogo e restaurar os m�veis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha m�e. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso voc� deseje prosseguir na profiss�o, ir� para o trabalho a p�, visto que o bairro � farto em hospitais e consult�rios. Ali�s, bem em cima do nosso pr�prio terreno levantaram um centro m�dico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casar�o n�o existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que voc� me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que voc� me transcreva sem precisar ser taqu�grafa, voc� est� a�? Acabou a novela, o jornal, o filme, n�o sei por que deixam a televis�o ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu n�o moleste os outros pacientes com meu palavr�rio. Mas aqui s� h� homens adultos, quase todos meio surdos, se houvesse senhoras de idade no recinto eu seria mais discreto. Por exemplo, jamais falaria das putinhas que se acocoravam aos faniquitos, quando meu pai arremessava moedas de cinco francos na sua su�te do Ritz. Meu pai ali muito compenetrado, e as cocotes nuinhas em postura de sapo, empenhadas em pin�ar as moedas no tapete, sem se valer dos dedos. A campe� ele mandava descer comigo ao meu quarto, e de volta ao Brasil confirmava � minha m�e que eu vinha me aperfei�oando no idioma. L� em casa como em todas as boas casas, na presen�a de empregados os assuntos de fam�lia se tratavam em franc�s, se bem que, para mam�e, at� me pedir o saleiro era assunto de fam�lia. E al�m do mais ela falava por met�foras, porque naquele tempo qualquer enfermeirinha tinha rudimentos de franc�s. Mas hoje a mo�a n�o est� para conversas, voltou amuada, vai me aplicar a inje��o. O son�fero n�o tem mais efeito imediato, e j� sei que o caminho do sono � como um corredor cheio de pensamentos. Ou�o ru�dos de gente, de v�sceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O m�dico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa. Um padre chegar� para a visita aos enfermos, falar� baixinho palavras em latim, mas n�o deve ser comigo. Sirene na rua, telefone, passos, h� sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. � a m�o que me sust�m pelos raros cabelos. At� eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragar� para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.

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"Leite Derramado"
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras
P�ginas: 200
Quanto: R$ 29,90 (pre�o promocional, por tempo limitado)
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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