Livraria da Folha

 
29/01/2009 - 23h21

Guerra de Secess�o encerrou escravid�o nos EUA; leia trecho de fic��o hist�rica

da Folha Online

Em 1864, ap�s incendiar a cidade de Atlanta, o general William Sherman liderou 60 mil homens das tropas do Norte --incluindo escravos negros sulistas libertados e refugiados brancos-- atrav�s dos estados da Ge�rgia e das Carolinas do Sul e do Norte. Considerado um "g�nio alucinado das t�ticas de guerra", Sherman saqueou planta��es sulistas, apossou-se do gado, das colheitas e p�s abaixo cidades e vilarejos.

A sangrenta jornada de Sherman � recriada na fic��o hist�rica "A Marcha" (Record), do americano E.L. Doctorow, autor do best-seller "Ragtime". Sua marcha � considerada um epis�dio definidor da Guerra de Secess�o, o maior conflito interno da hist�ria dos EUA, que teve como uma de suas principais consequ�ncias a liberta��o dos escravos.

No trecho do livro que pode ser lido abaixo, o secret�rio de Guerra do presidente Abraham Lincoln, Stanton, faz uma visita ao general Sherman para checar as condi��es em que estavam vivendo os negros rec�m-libertados. Leia abaixo trecho da Parte 1 de "A Marcha".

Aten��o: o texto reproduzido abaixo mant�m a ortografia original do livro e n�o est� atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortogr�fico. Conhe�a o livro "Escrevendo pela Nova Ortografia".

*

"Assim fenecem os louros", Sherman pensou. "O que dir� Stanton: que deixei uma for�a confederada de 10 mil homens escapar para a Carolina do Sul? A capacidade humana de gratid�o � limitada. Dentro da gratid�o est� a inveja. Dentro da inveja est� a indiferen�a de um mundo insens�vel." A carruagem do secret�rio rodando at� parar na porte coch�re, a guarda de honra apresentou armas. Stanton s� era segundo em autoridade ao presidente, mas aos olhos de Sherman o homem que desembarcava era uma figura portentosa cujo rosto macio, com suas bochechas rechonchudas, tra�a uma constitui��o que n�o sobreviveria a um dia de marcha.

Divulga��o
A Marcha Edgar Lawrence Doctorow Record Livraria da Folha
Capa do livro "A Marcha", de E.L. Doctorow

- General - disse ele, e estendeu a Sherman uma m�o frouxa. Aquilo concluiu as amenidades. Stanton come�ou a falar antes mesmo que chegassem � porta. Tinha muita coisa na cabe�a. Sua barba bifurcada dura e rosada subia e descia com suas palavras. Sherman, fascinado com o movimento da barba, perdeu uma boa parte do discurso. Algo sobre como os negros haviam sido tratados. Ent�o era isso.

- Gostaria de encontrar-me com seus oficiais generais - disse Stanton.

No jantar, Sherman apresentou seus comandantes de ala e de corpos. Eram uma vis�o imponente, paramentados com suas espadas cerimoniais, luvas e faixa na cintura. Mas ficaram sentados rigidamente como escolares, enquanto Stanton caminhava ao redor da mesa, como se estivesse dando uma aula.

- N�o estou seguro, senhores, da conduta adequada dos seus ex�rcitos em rela��o aos escravos libertos - disse. - Meu entendimento � que eles foram desencorajados de acompanhar as for�as, que foram mandados de volta para seus patr�es, ou deixados como presa para as guerrilhas.

- Os homens olharam para Sherman desabado em sua cadeira com um severo franzido na testa.

- Sr. Secret�rio - Sherman disse -, como espera que eu marche com 60 mil combatentes atrav�s de territ�rio inimigo com o peso da popula��o escrava inteira da Ge�rgia em suas costas? A verdade � que os negrinhos parecem estar aqui, como poder� ver se olhar atrav�s da janela.

- Recusou-se a alist�-los no seu ex�rcito a n�o ser como trabalhadores em pequenas tarefas.

- Como trabalhadores � a melhor maneira de serem usados.

- Existe um relato de um incidente em Ebeneezer Creek, n�o � verdade? O seu general Davis, que retirou a ponte e deixou centenas para tr�s para morrerem. Alguns se afogaram, alguns foram chacinados por guerrilheiros. Onde est� ele? Por que n�o est� aqui?

- Est� de servi�o. Vou mandar convoc�-lo.

- Quero ouvir dele mesmo a sua explica��o.

- E ficar� satisfeito com a necessidade militar da a��o. De manh� a cavalaria teve de ser trazida para a parada.

O secret�rio ficou com a barriga apertada contra o gradil de ferro da sacada dos apartamentos de Sherman e observou, sem sorrir, enquanto os cavalarianos desfilavam na rua abaixo. Kil Kilpatrick vinha montado � sua frente, um Belo Brummel em sua faixa e alamares dourados, espiando debaixo do seu chap�u emplumado com um sorriso obl�quo, a silhueta franzina parecendo impor-se com alguma insol�ncia, Sherman pensou - ou era sua pequena corcunda que transmitia essa atitude? "Kil � um tolo imprudente, gosta demais da guerra, acampa na alcova das mulheres, mas eu n�o o trocaria por nada."

No terceiro dia da visita, Sherman se perguntou quanto tempo mais ele conseguiria manter a sua paci�ncia. O secret�rio n�o falava, fulminava. Era como uma crian�a mimada e precisava sempre de alguma coisa - uma bebida, um saco de �gua quente, um telegrafista. Por tr�s de tudo que o secret�rio dizia ou fazia havia um desejo de aten��o. Sherman quisera o algod�o capturado para o tesouro do ex�rcito. Stanton deu uma contra-ordem e o passou para o Tesouro. Tinha opini�es firmes sobre quem deveria guarnecer a cidade. Presumia aconselhar Sherman em quest�es estritamente militares.

E ent�o veio o seu pedido para encontrar-se com alguns anci�es negros. Ficou impaciente at� que eles foram arrebanhados das igrejas negras. Quando se reuniram na sala de estar, perguntou-lhes o que entendiam por escravid�o.

Os negros olharam uns para os outros e sorriram.

- Escravid�o � receber por um poder irresist�vel o trabalho de outro homem e n�o por seu consentimento - um deles disse. Os outros concordaram com um aceno de cabe�a.

- E o que - disse Stanton - voc�s entendem da liberdade que foi dada pela proclama��o do presidente Lincoln?

- A liberdade prometida pela proclama��o est� nos livrando do jugo da servid�o e nos colocando onde podemos colher os frutos de nosso pr�prio trabalho, cuidar de n�s mesmos e ajudar o governo a manter a nossa liberdade.

Sherman escondeu seu espanto diante do fato de como eram articulados aqueles negros. Naquele momento, Stanton virou-se para ele.

- General - disse -, agora vou conferir com estes homens libertados os sentimentos da gente negra em rela��o ao senhor. Se incomodaria de deixar o recinto por um momento?

Sherman ficou l�vido. Caminhou pelo corredor, resmungando consigo mesmo. "Catequizar estes negros em rela��o ao meu car�ter! Como estariam eles aqui n�o fosse por mim? Dez mil s�o livres e alimentados e vestidos por minhas ordens! Que n�o estejam lutando tem a ver com meu julgamento militar. Nem tenho o lazer para trein�-los. Marchei um ex�rcito intacto por mais de 600 quil�metros. Arranquei as ferrovias dos rebeldes. Queimei suas cidades, suas forjas, seus arsenais, suas oficinas mec�nicas, seus moinhos de algod�o. Comi suas colheitas, consumi seu gado e me apropriei de 10 mil dos seus cavalos e mulas. Eles foram devastados e desprovidos, e ainda que nenhuma outra batalha seja travada suas for�as devem fenecer e morrer de desgaste. E isso n�o � o suficiente para o secret�rio de Guerra. Preciso me rebaixar junto aos escravos. Que se dane este Stanton - prestei o juramento de destruir a insurrei��o trai�oeira e preservar a Uni�o. � tudo. E basta."

Sherman ficou longe de abrandar ao saber que era tido em alta conta pelos anci�es negros. Tarde naquela noite ele chamou Morrison. O sujeito estava dormindo.

- Sua pena, major. Escreva a�. Ordem de Campanha seja l� qual for.

- Seria a n�mero 15, senhor.

- N�mero 15 - ele disse. - As Ilhas Mar�timas do sul de Charleston e os acres de planta��es abandonadas ao longo dos rios por 50 quil�metros para o interior da Carolina do Sul, e John's na Fl�rida, s�o reservados para o reassentamento dos negros. Anotou isso? Reassentamento dos negros. Todo negro livre chefe de fam�lia ter� direito a um t�tulo de 15 hectares de terra cultiv�vel. Sim, e as sementes e o equipamento para a lavoura. Todos os limites ser�o determinados e os t�tulos de posse emitidos por um oficial general do ex�rcito dos Estados Unidos na condi��o de - pode cham�-lo - Inspetor dos Reassentamentos e Planta��es. E prepare o documento para minha assinatura, com uma c�pia para o Sr. Stanton.

"N�o sou um abolicionista", Sherman pensou. "Mas com este engodo eu calo a boca de Edwin Stanton e libero os negros, que ficar�o aqui para plantar seus 15 hectares, e que Deus os ajude."

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"A Marcha"
Autor: E.L. Doctorow
Editora: Record
P�ginas: 416
Quanto: R$ 39,00
Como comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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