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04/11/2003 - 11h45

Leia entrevista de Rachel de Queiroz concedida � Folha em 1998

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da Folha Online

Por ocasi�o do lan�amento de seu livro de mem�rias "Tantos Anos", a escritora Rachel de Queiroz, que morreu hoje aos 92 anos, concedeu uma entrevista � Folha de S.Paulo em setembro de 1998 e falou sobre a milit�ncia comunista, o apoio ao golpe de 64 e tamb�m sobre a morte.

Veja a reportagem abaixo:

CYNARA MENEZES
da Folha de S.Paulo, Enviada Especial a Quixad� (CE)

Aos 87 anos, autora de "O Quinze" lan�a livro de mem�rias, em que fala da milit�ncia comunista, o apoio ao golpe de 64 e os amigos escritores; "agora, quero ir para o c�u", disse � Folha de S.Paulo.

Quando chegamos � fazenda N�o-me-Deixes, o peda�o de terra que Rachel de Queiroz herdou no meio da caatinga, a quase 200 km de Fortaleza, a escritora est� na rede, em seu quarto, lendo um livro com a ajuda de uma lupa.

Enxerga com dificuldade --s� foi descobrir a forte miopia que tem aos 18 anos. Tamb�m se confunde com velhas datas e, �s vezes, repete algumas hist�rias. Mas sua mem�ria em geral permanece intacta, apesar dos 88 anos que vai completar em novembro.

� uma senhora de cabelos grisalhos jamais maculados com tinta, de voz poderosa, por�m af�vel, divertida e provocadora, nem sempre sincera. A cr�tica de opini�es �cidas se curva � acad�mica adepta da boa vizinhan�a: n�o atinge ningu�m, al�m dos pol�ticos, em seu livro de mem�rias, "Tantos Anos", que chega �s livrarias na pr�xima semana pela editora Siciliano. Sobretudo os que ainda est�o vivos.

O livro, talvez o �ltimo que escreva --diz que seu pr�ximo projeto � "ir para o c�u o mais r�pido poss�vel"--, � uma obra despretensiosa, cheia de antigos "causos" de fam�lia e de relatos sobre sua trajet�ria pessoal, do comunismo ao apoio ao golpe de 64, passando pela conviv�ncia com amigos v�rios, escritores que fizeram a hist�ria liter�ria do Brasil deste s�culo.

Que, pelo visto, n�o passou pelo N�o-me-Deixes. L� o tempo p�ra. Como Rachel, a fazenda � um retrato vivo da �poca de sua primeira novela, "O Quinze", hist�ria ambientada na grande seca vivida pelo Cear� no ano de 1915.

As �rvores secas e esbranqui�adas d�o uma atmosfera extraterrena --para Rachel, europ�ia-- � fazenda, n�o h� �gua no a�ude e o gado da regi�o tem as ancas ossudas de todas as secas. Na casa antiga, com forno a lenha, os criados todavia se escondem na cozinha.

"� um feudo", reconhece Rachel, desvendando a origem nordestina privilegiada, descendente de pol�ticos republicanos. Ela conta que a servid�o dos empregados foi passando de pais para filhos.

Foi assim, inebriados neste cen�rio, que Rachel de Queiroz falou � Folha de S.Paulo sobre os mais diversos assuntos --menos, como no livro de mem�rias, sobre sua vida �ntima, que faz quest�o de preservar, embora aqui tenha aberto mais o cora��o forte de sertaneja.

A irm�, Maria Lu�za, incentivadora das mem�rias, que recolheu com a ajuda de um gravador e redigiu, tamb�m participa da conversa em que tratamos a escritora, a seu pedido, na segunda pessoa do singular. "Por favor, me trate de voc� e me chame de Rachel."

Folha de S.Paulo - Como foi a feitura das mem�rias?

Maria Lu�za de Queiroz - Eu sou a �nica respons�vel.

Rachel de Queiroz - Tomara que metam o pau.

Maria Lu�za - Foi um trabalho muito penoso. Enfrentei uma resist�ncia e s� porque sou muito teimosa...

Rachel - Manda em mim...

Maria Lu�za - Ela usava todo tipo de truque para n�o escrever, uma por��o de malcria��o. E eu achava que era uma obriga��o minha porque a vida da Rachel foi mais ou menos paralela � vida pol�tica do Brasil. Ela acompanhou todos os movimentos e participou deles. Minha irm� esteve sempre envolvida na hist�ria.

Rachel - N�o magnifiquemos.

Folha de S.Paulo - Voc�s sempre se provocaram assim?

Rachel - N�o, isso aqui � s� para uso das visitas. Mas ela extraiu esse livro de mim a f�rceps. N�o fiquem esperando muito, que n�o � l� essas coisas.

Folha de S.Paulo - Voc� foi, � uma pessoa feliz?

Rachel - Feliz, propriamente, n�o. Tenho uma natureza conformada com as circunst�ncias.

Folha de S.Paulo - Ent�o por que, nas fotos, est� sempre sorrindo?

Rachel - Porque fico muito feia quando estou s�ria. Tenho duas rugas grandes ao redor da boca.

Folha de S.Paulo - A mulher � uma flor que n�o aceita murchar?

Rachel - Pode n�o aceitar, mas a vida � implac�vel. O melhor � aceitar graciosamente. O (Ivo) Pitanguy diz sempre: "Voc� � a �nica mulher que tem Pitanguy de gra�a e n�o usa". Outro dia, algu�m me perguntou na frente dele por que eu n�o fazia pl�stica. Eu disse: "Minha filha, o Pitanguy estica, mas n�o renova. Voc� puxa aqui, ali, mas a velhice tem a sua harmonia, o queixo fica mais pesado, os olhos ficam mais fundos, e a cirurgia interrompe esse processo".

Folha de S.Paulo - Tem medo de morrer?

Rachel - N�o, para mim a morte � a liberta��o. O que seria de n�s se n�o fosse a morte? � a grande irm�, a grande amiga.

Folha de S.Paulo - Sendo at�ia � mais f�cil?

Rachel - � muito ruim isso, n�o ter uma cren�a, porque nas fases ruins voc� n�o tem em que se apegar. Tem que se encolher em si mesma e aguentar a pancadaria. Invejo profundamente quem tem uma boa f�. O Helder (d. Helder C�mara) ainda tem esperan�a de me converter, diz que quer morrer um dia depois de mim s� para rezar a extrema-un��o junto comigo.

Folha de S.Paulo - Como foi seu apoio aos militares em 64?

Rachel - Aceitamos o golpe militar para derrubar o Jango (Jo�o Goulart). Quando degenerou em ditadura, nos afastamos. N�o tivemos cargos. Conhecia eles todos por chamar de "voc�", mas nunca me aproveitei. Olhando desapaixonadamente, a a��o dos generais n�o foi t�o ruim quanto dizem nem t�o boa quanto os generais pretendem. Foi um governo de ocasi�o, mas que tentou conciliar e, assim que foi poss�vel abandonar, abandonaram e entregaram para os civis.

Folha de S.Paulo - O que houve de bom?

Rachel - Principalmente ter derrubado o governo de Jango, que foi uma limpeza. Sempre tive o maior desprezo pelo Jango intelectualmente, como pessoa, al�m do desconforto de ver na Presid�ncia o grupo getulista, que j� era por si fascista. Patrulharam-me muito porque aprovei o golpe e at� hoje aprovo. Com o Jango, o Brasil teria emborcado. Era um idiota manobrado por aquela gente.

Folha de S.Paulo - Voc� acha que o que um escritor pensa politicamente influi sobre o que escreve?

Rachel - Nunca envolvi o que escrevo literariamente --artigo de jornal � outra coisa, porque � para isso mesmo-- com ideologia nenhuma. Voc� pode apresentar o fato pol�tico num romance, o que voc� n�o pode � fazer prega��o pol�tica. Romance n�o � para isso.

Folha de S.Paulo - Como voc� avalia sua obra?

Rachel - Nunca releio um livro meu. Tenho um pouco de vergonha de todos os meus livros, de "O Quinze" tenho uma antipatia mortal, esse livro me persegue h� 60 anos. Detesto eles todos.

Folha de S.Paulo - Nas suas mem�rias, h� uma predile��o por livros policiais, considerados subliteratura...

Rachel - Eu adoro literatura policial. N�o existe literatura e subliteratura, depende do autor.

Folha de S.Paulo - Nunca quis se aventurar pelo policial?

Rachel - Eu que fui 'comuna' e muito reprimida por policial jamais iria criar um policial fabuloso. N�o h� uma tradi��o no Brasil de pol�cia intelectual. Alguns policiais do Sul tentam fazer o g�nero Sherlock, mas o que a gente tem � o policial que prende e bate.

Folha de S.Paulo - Voc� foi comunista, trotskista...

Rachel - Pertenci ao Partido Comunista durante 24 horas. Era simpatizante, fui admitida, mas no dia seguinte tive uma grande briga e abandonei o partido. Ideologicamente continuo trotskista, o camarada Trotski ainda � uma personalidade muito importante para mim. Era um grande escritor.

Folha de S.Paulo - Que autores mais lhe influenciaram?

Rachel - Dif�cil dizer, porque minha m�e era uma intelectual muito lida, foi formando meu gosto de pequena. Ia me dando o E�a, o menos pesado do E�a --sem dizer isso, porque a� eu ficava curiosa pelo mais pesado. Gosto muito dos autores ingleses, mas fui criada nos franceses, nos portugueses. Dos brasileiros, Machado, que � meu �dolo, meu deus liter�rio.

Folha de S.Paulo - L� filosofia, tamb�m?

Rachel - S� gosto de fic��o. Li filosofia quando marxista porque era obrigada. Filosofia � chato que � danado.

Folha de S.Paulo - Sua irm� diz que voc� censurou muitas partes do livro que contavam de sua pr�pria vida �ntima. Por qu�?

Rachel - Porque minha vida pessoal � minha, n�o do p�blico. Essas coisas a gente fala em romance. Nas biografias n�o se deve contar.

Folha de S.Paulo - Uma pessoa que n�o gosta de falar de coisas �ntimas se espanta com o mundo de hoje?

Rachel - Fazer parte da vida p�blica tem esse calv�rio. O pobre do Clinton, coitado, por aquele namorinho dele fizeram aquela onda, quando todo presidente a� tem casa montada com amante, filho e tudo. Get�lio tinha amantes sucessivas, todo presidente tem, n�?

Folha de S.Paulo - Como foi sua hist�ria de amor com Oyama de Macedo?

Rachel - Foi esse neg�cio de paix�o � primeira vista, fomos viver juntos, ele era desquitado e eu tamb�m. N�o havia div�rcio. Toda vez que no Congresso n�o passava a lei do div�rcio, a m�e dele tinha uma enxaqueca. Quando chegou, acho que um dos primeiros casamentos do Brasil foi o nosso. Oyama deu esse presente para a m�e. Ele foi meu �nico grande amor.

Folha de S.Paulo - Como � sobreviver a praticamente todos os seus amigos?

Rachel - Tem sido uma das grandes m�goas da minha vida. Meus amigos eram todos mais velhos que eu, de forma que fui perdendo todos eles, de um em um. (Pedro) Nava, Graciliano (Ramos), Z� Lins (do Rego), amigos queridos que eram como irm�os, a gente se via todo dia. O Z� Lins acordava a gente de noite porque tinha escrito uma p�gina e estava em d�vida e acordava a gente para ouvir o diabo da p�gina.

Folha de S.Paulo - Do seu grupo de Alagoas, quem era seu favorito?

Rachel - Graciliano. Era um homem muito inteligente, fiel �s amizades. Acompanhei-o at� morrer. Tinha um g�nio ruim. Quando implicava com algu�m dizia umas coisas ferinas. E cultivava o mau humor como uma caracter�stica.

Folha de S.Paulo - No livro, a senhora diz que M�rio de Andrade teria sido mais feliz se tivesse assumido sua homossexualidade. Por qu�?

Rachel - Creio que ele era um homem profundamente infeliz. Acho que sou a primeira pessoa que faz alus�o escrita a isso, mas era um fato not�rio entre todos n�s. A gente sentia isso nele, era vis�vel.

Folha de S.Paulo - E Manuel Bandeira, era um solteir�o convicto?

Rachel - Manuel era um amor, as mo�as adoravam. Agarravam Manuel, beijavam. E ele adorava ser adorado. Um dia, estava nos mostrando o novo apartamento dele. Tinha uma cama grande, eu fiz uma brincadeira. E ele disse: "Nunca uma mulher dormiu a noite inteira na minha cama". Algu�m perguntou a raz�o, e ele disse: "Tuberculose". N�o sei se era complexo ou cautela, porque at� ent�o tuberculose era uma doen�a incur�vel. Mas tinha namoradas, amantes, inspirava paix�es.

Folha de S.Paulo - Por que voc� n�o se refere � homossexualidade de seu primo Pedro Nava?

Rachel - Porque foi muito recente sua morte, porque �ramos ligad�ssimos e porque ele se matou para esconder isso. Ent�o, todos n�s respeitamos. Ele se matou para n�o ser desmascarado por um sujeito que estava fazendo chantagem.

Folha de S.Paulo - A maioria de seus amigos era homem, n�o?

Rachel - Minha roda sempre foi mais masculina, mas n�o por escolha. Dizem que mulher tem mais tend�ncia � rivalidade, mas talvez sejam os homens que espalhem isso.

Folha de S.Paulo - Clarice Lispector era sua amiga?

Rachel - Gostava muito dela e ela gostava muito de mim. Era uma pessoa estranha, muito fechada, cheia de fragilidades. Voc� magoava a Clarice sem saber, era uma pessoa extremamente dif�cil. Como escritora, era a maior de todas n�s.

Folha de S.Paulo - E qual seria sua posi��o?

Rachel - Acho que a �ltima.

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