"O Fundo Agbara é a realização do sonho de nossas ancestrais." Aline Odara, 37, profere a frase e faz uma pausa. Perde a fala em choro contido, doído, mas sobretudo orgulhoso e combativo.
Pedagoga e cientista social, ela criou o primeiro fundo de investimentos para mulheres negras do Brasil. E compartilha (Aline é dessas) o seu mérito.
"Devemos essa conquista a quem lutou antes. Desde que as primeiras pessoas negras pisaram aqui, escravizadas, a gente conduz transformações sociais. Muitos morreram para estarmos aqui."
O Agbara nasceu há três anos, mas integra processo de mais de 400 anos, destaca. Sua missão é lutar por justiça econômica para mulheres negras.
"Tratamos de mitigar a violência doméstica e urbana, a evasão escolar, o trabalho infantil, o genocídio da juventude negra, porque são os filhos dessas mulheres que são mortos a cada 23 minutos."
Por meio de jornadas formativas, que culminam em aportes para os negócios que variam de R$ 1.250 a R$ 5.000, o fundo já impactou 2.500 mulheres negras no Brasil. Programas online, unem formação técnica e política, letramento racial e mentorias.
A iniciativa beneficia mulheres negras, trans e lésbicas, mães solo, mulheres com mais de 50 anos e egressas do sistema prisional, migrantes e refugiadas.
Prioriza ações que fomentem a cultura afro-brasileira e criem impacto socioambiental positivo e existam há pelo menos um ano. Os valores investidos na lógica da filantropia negra se multiplicam —em renda e novos sonhos.
A partir da própria experiência, Aline compreendeu não haver perspectiva de sonhar em uma realidade de instabilidade financeira.
"Dois fatos mudaram o rumo da minha vida: a perda de um irmão e a superação de um câncer. Fui invadida por intenso sentimento de transformação social."
Estava desempregada há um ano quando, dois dias antes do lockdown, assumiu vaga de concurso de Campinas como professora de educação infantil. "Minha família passava por dificuldades, morando em um cômodo. Com o trabalho, consegui ajudá-los."
A renda lhe permitiu fazer cursos online de filosofia africana, pedagogia feminista negra. "Foi incrível. O pensamento de ‘como é que eu vou pagar meu aluguel, comer?’ aquietou. E abriu espaço para a potência transformadora. Parei de me preocupar com o imediato e pensei no futuro."
Dois fatos mudaram o rumo da minha vida: a perda de um irmão e a superação de um câncer. Fui invadida por intenso sentimento de transformação social.
E decidiu que iria ajudar outras mulheres negras a alcançar esse lugar. A fagulha para criar um fundo foi o pedido de uma amiga, que queria sua máquina de costura emprestada.
Aline decidiu que ia ajudá-la a conseguir o dinheiro para comprar uma. "Pensei numa vaquinha, como as tantas que eu costumava fazer."
Aí a faísca virou labareda. "Criei um círculo de doação. Reuni 20 pessoas e pedi R$ 20 mensais, por um ano."
E convidou Fabiana Aguiar, educadora e com MBA em gestão pela USP, para cofundar o fundo. "Em cinco dias, consegui 60 doadores recorrentes. Em três meses, eram 300, com ticket de R$ 30 por mês."
No início, amigos, pessoas que conheciam Aline do grêmio estudantil, do movimento de mulheres, conhecidos de conhecidos. Hoje, são 150 doadores individuais.
O que mantém a estrutura e os programas são investidores institucionais. Fundações e fundos, nacionais e internacionais. Aportes que já ultrapassaram os R$ 2,5 milhões e fortalecem os sonhos de Aline, Fabiana e das 12 mulheres negras que compõem o Agbara.
Da máquina de costura para um modelo de filantropia negra, o fundo alcançou resultados expressivos e atraiu organizações do setor.
Aline se tornou uma voz convidada para importantes espaços de escuta, sempre com a bandeira da justiça econômica.
Só neste semestre, ela vai a eventos em Estados Unidos, Turquia, Quênia, Alemanha, Colômbia. O fundo entrou para importantes redes, como Women’s Funding Network, comunidade que reúne fundos para mulheres em todo o mundo.
Essas conexões fortalecem a figura de Aline e uma vocação eclodiu: advocacy para influenciar políticas públicas.
"Queremos que mulheres negras ajudem a pensar o orçamento público. Não tem como falar de direitos econômicos se elas não estiverem na mesa." Para sustentar essa frente, criou núcleo para gerar dados sobre mulheres negras.
"Aline e o Agbara olham não só a promoção do empreendedorismo, mas mostram a todos que não se combate as desigualdades se não começar pelas mulheres negras, que estão na base da pirâmide", diz Kênia Cardoso, coordenadora da Fundação Tide Setubal, parceira do Agbara.
Queremos que mulheres negras ajudem a pensar o orçamento público. Não tem como falar de direitos econômicos se elas não estiverem na mesa
Do idioma iorubá, Agbara significa potência. A escolha da palavra vem de uma candomblecista, que confia na força de seu orixá e rende homenagem à língua dos ancestrais da diáspora africana.
Neste contexto, um dos pilares de ação é o letramento racial. "Oferecemos para as mulheres atendidas aulas sobre gênero, raça, desigualdade. Para que se consiga conduzi-las ao êxito em seus projetos, em contraponto ao apagamento da nossa história", diz. "Conhecimento é poder".
E dividir esse conhecimento é estratégico. O Agbara já impactou 1.500 pessoas não negras em duas jornadas antirracistas por ano.
"Convidamos as pessoas a se racializarem. Porque o racismo não foi criado por negros. As pessoas brancas têm que ter lugar de fala na luta antirracista."
Assim, o fundo combate o racismo estrutural. "Dividimos conhecimento o tempo todo."
E Aline não quer ser a única empreendedora negra na sala. E é irrefreável a força que move, como a da metodologia educacional negra e popular que torna o fundo tão singular. "É um fundo que fala a língua delas."
Daí surgem redes de apoio. "Elas começam a se articular entre si." Do Agbara, nasceram coletivos, parcerias.
"As mulheres se reconhecem no espaço em que suas dores são espelhadas e confortadas", diz Aline.
Nos encontros, as soluções brotam. "Quando se é mulher, negra, pobre, sempre tem que dar respostas criativas para a vida."
Fundo Agbara em números
- 4.400 pessoas foram impactadas diretamente, e 8.000, indiretamente, pelas ações da iniciativa
- R$ 900 mil transferidos diretamente a 2.296 mulheres negras no Brasil
- 197 iniciativas lideradas por mulheres negras receberam aportes de R$ 10 mil do Fundo Agbara
- 14 estados do país receberam formações técnicas (foram 96 ao todo) e/ou programas de aceleração (7)
- 9,1% das doações para o fundo são recorrentes de 150 pessoas físicas, e 90,9%, de empresas e fundações
Conheça os demais finalistas na plataforma Folha Social+. Vote e, se possível, doe para esta iniciativa na Escolha do Leitor até 20 de outubro em folha.com/escolhadoleitor2023.
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