Na casa dos designers Rodrigo Belli e João Manuel Piedrafita, ambos de 26 anos, nunca faltou água. Moradores da zona sul, eles estão a 30 km do Jardim Gramacho, bairro do antigo lixão de Duque de Caxias (RJ), onde Adriana Souza, 47, vive sem acesso à água potável em seu barraco com os filhos menores.
Essas realidades discrepantes fizeram o caminho dela cruzar com o dos jovens, cofundadores da Água Camelo.
A startup propicia acesso à água em favelas, no semiárido e na Amazônia por meio de uma solução simples e barata. O kit camelo, nada mais do que uma mochila com capacidade para filtrar e armazenar 15 litros de água, criada por Belli quando ainda cursava a faculdade de design.
Há três meses, Adriana recebeu a dela. Desde então, parou de beber direto o que vinha do carro pipa. "O gosto da água é diferente, é de água limpa."
A catadora é uma das 14.500 pessoas beneficiadas pela startup só no Rio. No Jardim Gramacho, primeiro lugar a receber as mochilas em dezembro de 2019, mais de 100 famílias bebem e cozinham com a água do filtro portátil pendurado na parede e facilmente carregado nas costas.
Além da Baixada Fluminense, a solução de baixo custo oferecida pela startup está presente em 12 estados, do semiárido à Amazônia.
Fundada em agosto de 2020, a Água Camelo surgiu a partir de uma provocação em sala de aula, ainda em 2018, quando Belli e Piedrafita eram alunos de desenho industrial na PUC-Rio. A ideia era pensar o design participativo e social.
"A proposta é que, a partir da combinação da vivência pessoal e do que é o mundo concreto, o aluno faça uma leitura do espaço e das pessoas com quem ele está convivendo. E aí possa contribuir na construção de algo que seja útil", explica o professor Mário Seixas.
A princípio, o projeto seria apenas para a disciplina da universidade. Na pesquisa, Belli se viu diante da realidade calamitosa dos cerca de 35 milhões de brasileiros que não têm acesso à água tratada, segundo dados do Instituto Trata Brasil.
A saída pensada por ele foi um objeto capaz de transportar, armazenar e purificar a água. Uma solução baseada no conceito "plug and play", isto é, fácil de usar e com impacto imediato.
Chegar ao produto final, no entanto, foi uma maratona para além do campus.
"O design mais simples muitas vezes é o mais complexo", diz Belli. "Nosso trabalho era refinar a ferramenta para ela se encaixar melhor na vida das pessoas."
Foram várias tentativas e erros. Belli conta, por exemplo, que inicialmente o kit teria capacidade de 25 litros, mas ficava muito pesado para carregar. Chegaram, então, ao tamanho atual de 15.
Belli e Piedrafita são amigos de infância e se reencontraram na universidade, junto com o terceiro fundador da startup, Daniel Ilg.
A personalidade complementar dos três contribui para o funcionamento da Água Camelo. Seguindo a filosofia aprendida nas aulas, o que cada um viveu antes de fundar a startup serviu como base para o trabalho atual.
Belli era skatista profissional de downhill e chegou a competir em mundiais da categoria. O esporte, diz ele, o ajudou a ver os erros não como obstáculos, mas como uma forma de chegar aos acertos.
E foi assim que conseguiu as doações das primeiras peças para fazer o protótipo.
Já Piedrafita aprendeu no berço a riqueza do contato com realidades diferentes. Nascido no Acre e filho de antropólogo Marcelo Piedrafita Iglesias e da economista Bia Saldanha, especialista em extração sustentável da borracha, ele passou parte da infância entre o Rio e a Amazônia.
Tinha apenas dois meses, quando foi com os pais pela primeira vez à aldeia Mutum, na terra indígena Yawanawá no Acre.
"Eu vivi essa questão da água desde pequeno em todas minhas idas para as terras indígenas." Piedrafita explica que, embora a Amazônia seja a maior bacia hidrográfica do mundo, acesso à água potável é um problema disseminado.
Foi a relação do sócio da Água Camelo com a floresta que levou a startup a dar mais um passo em sua história.
No final de 2021, os kits começaram a ser distribuição a comunidades indígenas do Acre. A primeira foi justamente a aldeia Mutum, onde desembarcam com um piloto.
Nunca deu para fugir da floresta. Até quando eu não sabia muito bem o que fazer da minha vida, eu sabia que acabaria na Amazônia de alguma forma
Tanto a mochila quanto a central de distribuição da Água Camelo filtram até 99,9% das bactérias, protozoários e partículas em suspensão. E a manutenção é feita pelos usuários.
"Na Amazônia, temos só duas estações: uma com e outra sem chuva. Nos seis meses de chuvas, enxurradas trazem doenças na água. Então o sistema da Água Camelo diminuiu diarreia e verminose na aldeia. No passado, perdemos crianças e velhos por isso", Joaquim Yawanawá, presidente da Associação Sociocultural Yawanawá.
Impactos que fizeram a solução da Água Camelo chegar a mais 13 aldeias do Rio Gregório.
A startup também fez parte dos esforços para atender ao povo ianomâmi durante a crise humanitária enfrentada pelos indígenas e que veio à tona no início deste ano.
"Com essa história de ir com a mochila entre comunidades que estão longe da bênção que é a água, eles encarnam uma espécie de anjos da guarda da floresta", diz o líder indígena e escritor Ailton Krenak, padrinho de Piedrafita.
Os sócios da Água Camelo encaram a questão do acesso à água de qualidade para além da filantropia.
Focando em um modelo de negócio sustentável a longo prazo, eles vendem os kits a empresas que bancam os projetos voltadas para populações vulneráveis afetadas por desabastecimento.
"A gente nunca cobra das pessoas das comunidades, mas de quem tem dinheiro para pagar e precisa ajudar na universalização da água tratada", explica Belli.
Água Camelo em números
- 200 mil pessoas foram beneficiadas pelos "kits camelo" (mochila) e pela central de filtragem da iniciativa; mais de 20 mil pessoas são impactadas diariamente
- 11 estados do Brasil receberam 1.000 kits distribuídos em centros comunitários e residências
- Fim da diarreia foi registrada após instalação do kit em aldeia no Acre onde 96% de famílias sofriam com o mal
- 80% dos kits foram instalados em casas chefiadas por mulheres negras e em condições de vulnerabilidade
- 120 comunidades indígenas foram atendidas pela iniciativa, que atuou com parceiros na emergência humanitária dos ianomâmis
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