“Não é a gente que tira a fotografia. A fotografia é dada para a gente.” Esse era um dos motes de João Bittar, um dos jornalistas mais marcantes que passaram pela Folha. “Você tem que gostar de quem fotografa. Tem que gostar de gente. Tem que deixar a pessoa perceber que você está gostando. Aí, ela te dá a foto de presente.”
Editor de fotografia do jornal de 1996 a 2002, Bittar era unanimidade entre os colegas fotógrafos. “Caráter” é a palavra que muitos deles usam ao se referir ao chefe que se empolgava com cada clique e que sabia motivar e extrair o melhor de cada um.
Ele chegou à Folha em um momento-chave: a fotografia digital estava sendo implementada pela editora Ana Estela de Sousa Pinto. Mas os repórteres fotográficos demonstravam certa dificuldade em mudar o jeito que trabalhavam havia décadas.
Primeiro, vieram os scanners para os negativos e a recepção digital de fotos de agências internacionais. Em 1994, ainda sob o comando de Ana Estela, “a Folha publicou pela primeira vez na América Latina uma foto 100% digital, do clique à edição”, lembrou o fotógrafo João Wainer, em texto escrito em 2019.
“A imagem, do jogador corintiano Viola comemorando o gol da vitória por 1 a 0 sobre a Portuguesa, foi feita com uma câmera NC 2000, o primeiro equipamento digital adequado ao fotojornalismo, que havia sido lançado nos EUA havia apenas um mês.”
Naqueles novos tempos, além de as câmeras não portarem mais rolos de filmes preto e branco ou colorido, o fotógrafo deveria começar a fazer legendas e colocar informações como data e local nos arquivos de bytes que compunham as imagens. Não haveria mais laboratórios, revelações ou papel fotográfico, tudo se tornava intangível.
Entusiasta dessa nova tecnologia, Bittar foi recebido com respeito e admiração pelos colegas. Sua carreira começara em 1967 nos laboratórios de revelação da editora Abril. Ali, fotografou para as revistas Placar e Veja, entre outras. Mas foi na concorrente IstoÉ, dirigida por Mino Carta no final dos anos 1970, que Bittar começou a se destacar.
Para a revista, fotografou os movimentos sociais, estudantis e políticos que borbulhavam em São Paulo apesar –e por causa— da ditadura. Entre esses movimentos, estavam as diversas convenções e reuniões do nascente Partido dos Trabalhadores e de seu líder, Luiz Inácio Lula da Silva
No início dos anos 1980, ele e sua segunda mulher, Marisa Carrião, viajaram por seis meses para a Europa, onde visitaram as Redações dos grandes jornais e de pequenas agências de fotografia. Na volta, abriram, com outros colegas, a agência Angular, cooperativa que vendia fotos para a imprensa e na qual os fotógrafos eram donos de seu material.
Marisa, com quem viveu 22 anos e teve dois filhos, Thays e André (antes, nascera Marina, do primeiro casamento de Bittar), conta que ele era especialmente atencioso com os novatos. “Tirava um dia da semana para ver portfólios de qualquer um que batesse na porta da Folha. E vibrava com as fotos dos outros.”
Thays Bittar, que seguiu os passos do pai na fotografia, diz que ele era apaixonado pela fotografia. “Ele sempre me estimulou muito. Em 1996, quando era editor da Folha, fizemos uma matéria para a Folhinha em que eu testava câmeras vendidas para crianças. Aos seis anos, eu já me sentia a fotógrafa”, diverte-se hoje.
Após o fim do casamento, no início dos anos 2000, Bittar se apaixonou pela sua terceira mulher, a também fotógrafa Heloisa Ballarini. Com ela, viveu até a morte, após uma parada cardiorrespiratória em 2011. Tinha 60 anos.
Em 2004, estava trabalhando como editor da revista Época quando apareceu a notícia de que um livro e um filme sobre Lula estavam sendo produzidos. Para ilustrar a reportagem, Bittar se lembrou de uma fotografia do fim dos anos 1970, de uma reunião do PT, que nunca havia sido publicada —a mesma que está nesta página.
“Quando Lula saiu do banheiro, eu tirei uma foto e ele não gostou muito. Aí, ele me desafiou”, contou Bittar em um vídeo feito por um amigo. “Levantou a camiseta, apontou para o umbigo e falou ‘fotografa’. Mas quando ele falou, eu já tinha fotografado. Certamente é a foto mais importante que eu fiz na minha vida”, afirmou.
“João tinha muita admiração pelo Lula”, disse Heloisa sobre a imagem. “Era de uma geração que não gostava de dizer ‘olha para cá’, ‘aponta para lá’. Nunca vi ele dirigir alguém para fotografar. Achava que a foto era dada para a gente. Foi o que aconteceu neste caso.”
João Bittar (1951-2011)
Nasceu em São Paulo e trabalhou em quase todas as grandes publicações da cidade, como Diário de S.Paulo, Gazeta Mercantil, Veja, Exame, Época, IstoÉ, Quem, Placar e outras. Na Folha, esteve cerca de um ano como fotógrafo em 1984 e, na década seguinte, foi editor de fotografia até 2002. Deixou, na profissão, um legado de renovação e caráter.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.