As discussões sobre a obrigatoriedade das vacinas não são um assunto novo na história brasileira. A polarização em torno da vacina contra o novo coronavírus evocou, inevitavelmente, o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, ainda que ambas tenham motivações e contextos muito diversos.
Na quinta (7), o Instituto Butantan anunciou a eficácia mínima de 78% da vacina Coronavac, produzida em parceria com o laboratório chinês Sinovac.
Entre as duas pontas da discussão, em 12 de março de 1925, o médico Vital Brazil, fundador e primeiro diretor do Instituto Butantan, deu uma entrevista à Folha da Noite, um dos jornais que daria origem à Folha, justamente sobre vacinação. Na ocasião, contra o tifo, doença causada por bactérias.
Publicada na primeira página do jornal, a entrevista traz uma clara opinião de Brazil sobre o que seria necessário para a efetividade da vacinação pela via hipodérmica, ou seja, injeções subcutâneas: só funcionaria se ela fosse obrigatória —e não era.
Tratado pela Folha da Noite como " o nosso esforçado patrício", o médico atribuiu a dificuldade para que o método seja eficaz à recusa da população e ao próprio funcionamento da vacina, com mais duas doses necessárias. Nesse caso, a solução, segundo Brazil, era a vacina por via gástrica, ou seja, pela ingestão da substância, composta por culturas mortas do bacilo.
Vital Brazil (1865-1950) foi médico sanitarista e o primeiro diretor do Instituto Butantan, quando assumiu a função entre 1899 e 1919, num primeiro período, e entre 1924 e 1928, num segundo.
Mineiro de Campanha (MG), ele estudou medicina no Rio de Janeiro e foi convidado para participar do Instituto Bacteriológico do estado de São Paulo, à época dirigido por Adolfo Lutz.
Brazil teve como companheiros de trabalho outros médicos e pesquisadores ilustres, que também dão nome a instituições atuais, como Oswaldo Cruz, Adolfo Lutz e Emílio Ribas.
O médico foi nomeado como diretor do então Instituto Soroterápico, instalado na Fazenda Butantan, distante cerca de 8 km do centro da capital paulista, às margens do rio Pinheiros, e que se tornaria o Instituto Butantan.
À época, um surto de peste bubônica na baixada santista detectado por Brazil desafiava as autoridades —não só pelas infecções e mortes, mas pelos prejuízos ao escoamento da produção de café para o exterior.
Duas principais atividades seriam desenvolvidas pelo instituto em seus primeiros anos: o estudo e produção de tratamentos contra doenças infectocontagiosas, como a peste bubônica, a febre amarela e o tifo, e a pesquisa de soros contra picadas de serpentes, área importante do Butantan até hoje.
Em 1919, Brazil deixou a direção da instituição alegando ingerência do Serviço Sanitário, sob cuja gestão estava o instituto. Em 1924, o médico voltou à direção do Butantan. Durante sua segunda passagem, o instituto passou a produzir vacinas como a BCG e a antivaríolica.
Pela saúde pública
O Tifo
A Folha da Noite ouve a palavra autorizada do Dr. Vital Brasil sobre o momentoso e importante assunto
É sabido que o Serviço Sanitário substituiu o método de via hipodérmica pelo de via gástrica, na campanha de vacinação, iniciada ativamente em consequência do atual surto da endemia de tifo.
As causas, que determinaram o emprego da ingestão de culturas mortas, em lugar de injeções do bacilo tífico, já foram declinadas oficiosamente. Resumem-se na morosidade do segundo sistema para uma vacinação em massa e na crescida porcentagem de recusas, logo à aplicação da primeira dose.
Interessante era saber, entretanto, qual a opinião do Dr. Vital Brasil, a respeito do assunto. Além de ser autoridade científica de alta nomeada, o nosso esforçado patrício está à frente do instituto encarregado de preparar e fornecer o material para a vacinação antitífica em São Paulo.
Foi por isso que pedimos ao diretor do Butantan nos proporcionasse uma entrevista.
Encontramo-lo, uma noite destas, no Instituto de Higiene, quando encerrava uma sessão da Sociedade de Biologia de São Paulo, da qual é presidente.
Atendidos cortesmente, fomos logo ao assunto e foi com prazer e enlevo que ouvimos o ilustre cientista expressar-se, na simplicidade própria dos homens do seu quilate.
Desde o princípio da campanha —disse-nos, sem atavios, o dr. Vital Brazil— eu fui de opinião que a vacina por via hipodérmica não devia ser o meio a adotar para combater o tifo em São Paulo.
Pela morosidade?...
Sim porque não seria prático e os fatos o provaram. O senhor sabe que para vacinar toda uma população numerosa como a de São Paulo, por meio de injeções repetidas, seria necessário um esforço formidável da parte das autoridades sanitárias e isso seria realizável no decorrer de longo tempo.
Ademais, não temos leis que obriguem a vacinação, de sorte que às numerosas recusas de primeira mão se juntam as que decorrem da administração da dose inicial. E isso é, além do mais, prejudicial.
Eu me explico: a primeira dose apenas sensibiliza; ora, quem a toma fica, pois, predisposto a receber a infestação, que só será evitada com a administração de duas outras doses, que realizarão a imunidade.
De maneira que as pessoas que só recebem a primeira injeção ficam sujeitas ao mal, ao invés de evitá-lo, o que importa dizer que, para corrigir esse grave inconveniente, necessário se tornaria que tivéssemos leis que obrigassem a vacinação?
Perfeitamente. Por isso é que sempre achei que se devia provocar a imunidade local por via gástrica, que, de resto, se resume em um manejo mais fácil e apresenta resultados práticos muito mais satisfatórios.
E não há contraindicação?
Nenhuma.
Mas provoca reações?
Às vezes, uma pequena diarréia proveniente da pílula de bile aliada a uma ligeira irritação do intestino.
E qual é o modo de agir da vacina, por via gástrica? Há penetração dos germens na circulação e consequente formação de anticorpos?
Não se tem encontrado anticorpos com administração “per os” [via oral] da vacina antitífica. Parece que ela provoca uma imunidade local. A cultura morta é espalhada pela bile nos numerosos órgãos linfáticos do intestino, provocando uma reação, que produz grande afluência de leucócitos e consequente defesa contra a infestação.
Esse sistema de vacinação é moderno, doutor?
Data de poucos anos. E teve sua origem nos estudos de Sanarelli [Giovanni Sanarelli, médico italiano que veio ao Brasil no final do século 19], na Itália. Esse professor notou uma taxia especial [resposta comportamental de um organismo a partir de algum estímulo] do intestino pelos germens da cólera, injetados subcutaneamente em animais de laboratório.
Provado esse tropismo, isto é, uma eleição especial do intestino para receber certos germens, Besredka [Alexandre Besredka, pesquisador ucraniano do Instituto Pasteur, na França] fez experiências, primeiro com o carbúnculo e depois com o tifo. Para facilitar a infecção, Besredka administrava em coelhos, por via gástrica, a cultura viva de bacilos de tifo junto com um pouco de bile, que é um ótimo meio para esse e outros germens.
Aconteceu, porém, que casualmente dando culturas mortas verificou, depois, que não mais se verificava a infestação por culturas vivas. Daí, para a aplicação no homem, foi um passo.
Em França, Brethoneau de Lafléche foi encarregado de vacinar num grande colégio em que haviam aparecido alguns casos de tifo. Ele dividiu os alunos em duas turmas, vacinando uma por via subcutânea e a outra por via gástrica. E sabe qual foi o resultado?
Mais favorável para 2ª turma?
Esperava que me respondesse isso mesmo. E foi: a vacinação por via gástrica falhou em 3% de casos enquanto que a por via subcutânea falhou em 7%, mais do dobro, portanto. Outros fatos positivos foram posteriormente registrados. Em 1922 foi debelada uma epidemia de tifo em Pas de Calais [cidade no norte da França], apenas com a vacinação por via gástrica. E agora, concomitantemente com São Paulo, em Sergipe estão praticando esse processo, para imunizar a sua população contra o tifo.
Mais alguns momentos de agradável palestra e despediamo-nos do dr. Vital Brasil, que tomou o seu automóvel e seguiu em rumo do Instituto Butantan.
Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.
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