Nos 100 anos da Folha, o 57º foi provavelmente o mais tenso.
Em 1977, em meio a uma turbulência que ameaçava a continuidade do jornal, Boris Casoy assumiu o comando da Redação com a missão de fazer o que ele chama de travessia até o porto seguro do pós-ditadura.
O contexto é conhecido. Em 15 de setembro daquele ano, o colunista Lourenço Diaferia foi preso após publicar uma texto em que comparava o Duque de Caxias a um sargento que havia morrido ao pular em um poço de ariranhas, no zoológico de Brasília, para salvar um garoto.
“Eu digo, com todas as letras, prefiro esse sargento herói ao Duque de Caxias”, escreveu no artigo, que os militares consideraram provocativo. Em protesto contra sua prisão, a Folha publicou em branco o espaço da coluna, o que só aumentou a fúria nas Forças Armadas.
Boris estava de férias quando recebeu um telefonema de Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), publisher do jornal. “Eu estava me chafurdando na lama de Araxá (MG). Toca o telefone umas 15h, era o seu Frias. ‘Olha, eu queria que você voltasse porque eu tenho que conversar umas coisas, mas tem que ser pessoalmente’”, relembra Boris.
Resignado em interromper o descanso, ele disse que pegaria um carro no dia seguinte cedinho, mas Frias afirmou que mandaria um avião buscá-lo. “Aí eu vi que era importante”, recorda.
Boris só veio a saber o motivo da convocação urgente na noite daquele dia, quando entrou na sala do chefe e logo ouviu que precisaria assumir o jornal. Havia o risco real de um ato de força da ditadura, como suspensão da circulação ou até fechamento.
Na época, ele editava a coluna política Painel, período que relembra como um dos mais felizes de sua carreira. No comando da Redação, estava Claudio Abramo, a quem Boris substituiria.
“O Claudio não era ligado a nenhum partido ou movimento opositor, pelo que eu sei, mas era claramente um homem de esquerda. E eu nunca fui de esquerda, disseram até que eu fui do CCC [Comando de Caça aos Comunistas], o que é mentira. Naquele momento o seu Frias talvez tenha entendido que era conveniente ter alguém como eu no comando”, afirma.
Boris havia entrado na Folha em 1974. Conheceu Frias quando era assessor de imprensa de Figueiredo Ferraz, prefeito de São Paulo nomeado pela ditadura. “Um dia ele me disse: eu gosto de você, você não é um ‘yes man’ [pessoa subserviente]. Porque eu tive que contrariá-lo algumas vezes quando estava na prefeitura”, diz.
Entrou direto como editor de política e, três meses depois, virou editor-chefe, abaixo de Abramo. Mas, sem experiência de Redação, pediu demissão em 1976, apenas para retornar no ano seguinte, desta vez como editor do Painel.
Menos de um ano depois de ter substituído Abramo, Boris passou pelo que considera ter sido seu maior teste. Em abril de 1978, os jornalistas Getulio Bittencourt e Haroldo Cerqueira Lima fizeram entrevista com o general João Figueiredo, que assumiria a Presidência no ano seguinte.
Boris, com bom trânsito com Figueiredo, havia ajudado a intermediar o encontro, que, no entanto, não havia sido gravado, a pedido do próprio entrevistado. Não estava claro nem se o general considerava aquilo uma entrevista, ou uma conversa informal.
Com memória prodigiosa, Bittencourt reconstituiu o diálogo, redigiu a entrevista e mandou a batata quente para Boris decidir se publicaria.
“Eu me tranquei na minha sala com os textos, li e reli, decidir publicar. A entrevista era grande, saiu em dois dias, e deu um upgrade no jornal. O Frias e o Claudio [Abramo] depois me disseram que não teriam publicado, mas que a decisão era minha porque era meu nome no alto da primeira página”.
À medida em que foi ficando confortável na cadeira de editor-responsável (nome de seu cargo), Boris foi implementando mudanças. Uma de suas inovações foi criar uma bancada de telefones na Redação. “Os repórteres não tinham o costume de usar o telefone, mas eu usava muito. Me apelidaram de Boris Graham Bell”, diz, em referência ao inventor do aparelho.
Também havia resistência ao uso de gravador. “Era considerado uma coisa acintosa. Diziam que automatizava o jornalismo. É como o pessoal que hoje se recusa a tomar a vacina”.
Completar a travessia do jornal para a fase final do regime militar incluiu a decisão de engajar a Folha na campanha pelas Diretas-Já. Como tudo naquele período, não foi uma atitude livre de riscos. “Levantar a bandeira das Diretas, do ponto de vista de um jornal que queria sobreviver, era quase uma heresia, era para ir para a fogueira”, diz.
Foram incontáveis as reuniões com seu Frias e Otavio Frias Filho (1957-2018), que se preparava para assumir o comando da Redação. “A gente tinha sensores na sociedade, procurávamos auscultar o que ocorria. As pessoas achavam que o país precisava se democratizar. Havia um desejo coletivo, uma fervura de busca de democracia. Concluímos então que era o momento estratégico de liderar uma campanha por Diretas”.
Pouco depois, em 1984, Boris sentiu que seu papel na travessia estava completo. Retornou ao Painel, onde ficou até 1987, quando recebeu o convite para se reinventar como âncora de um telejornal no SBT.
Aceitou antes de falar com o dono do jornal. “Eu não consultei o Frias porque eu sabia que se consultasse eu não ia conseguir sair. Ele ia me dobrar. Mas eu queria o desafio”, diz. Na TV, virou uma celebridade, com seu bordão “Isto é uma vergonha!”.
Mas manteve o contato com o jornal e o antigo chefe. “Eu tinha uma relação de pai e filho com ele [seu Frias], a gente se abraçava, se beijava”, diz.
Aos 79 anos, Boris agora se dedica a um novo canal no YouTube, um mundo ainda desconhecido, que ele considera fascinante e desafiador “A internet criou um grande ponto de interrogação. Hoje é muito difícil vislumbrar o horizonte para o jornalismo”, diz.
Nesta segunda (30), também vai estrear em um telejornal matutino na TV Gazeta, comentando as principais notícias do dia.
Com a experiência de quem teve de lidar diariamente com generais durante a ditadura, ele afirma que chama a atenção a “estridência” do militar que hoje ocupa o Palácio do Planalto. “Naquela época, as coisas se passavam em silêncio. Os militares trabalhavam com estratégia e tática, explosões eram raras. Eram mais previsíveis”, lembra.
Boris Casoy
Nascido em São Paulo em 1941, começou a trabalhar em 1974 na Folha, onde atuou como editor do caderno de política e da coluna Painel, e editor-chefe. Em 1977, tornou-se editor-responsável do jornal, substituindo Claudio Abramo, e permaneceu nessa função até 1984. Boris deixou a Folha em 1987 para assumir o trabalho de âncora no SBT. Aos 79 anos, vai estrear telejornal nesta segunda (30) na TV Gazeta.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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