Na primeira aula da faculdade de jornalismo da Universidade Federal de Minas Gerais em 1972, o professor falou aos alunos: "O jornalismo está acabando". "Como sou burra", pensou Elvira Lobato. "Entrei justamente numa profissão que está acabando..."
Elvira, contudo, tinha alma de repórter. "Te falei que tenho curiosidade inesgotável?", pergunta. Sua primeira experiência no ramo foi lá pelos 10 anos de idade, na pequena Abadia (MG), quando certa noite uma mulher que apanhava do marido matou o agressor a bala.
A menina correu para a casa do crime, entrou no quarto para ver o morto, que jazia numa poça de sangue seco e negro, sentou-se em cima do fogão a lenha e ali passou a manhã ouvindo tudo o que os adultos sussurravam.
Nona filha de 17 irmãos, Elvira nasceu na zona rural de Pitangui (MG) e, aos 12, foi para Belo Horizonte. "Todos os meus professores diziam que eu deveria fazer jornalismo. Eu devia ser uma enxerida sem fim", diverte-se hoje.
Por essas e outras, ela não deu muita bola à profecia daquele professor e seguiu carreira. Sorte dela, da Folha e de seus leitores, já que ela se tornaria uma das principais jornalistas de economia do país entre as décadas de 1980 e 2000. "Entrei na Folha em 2 de outubro de 1984", conta, citando a data de cabeça. Escreveu para o jornal por 27 anos, até dezembro de 2011, quando se aposentou.
Naquele ano, o jornal implantava o Projeto Folha concebido por seu novo diretor de Redação, Otávio Frias Filho (1957-2018). Além de instituir um jornalismo crítico e apartidário, o projeto estabelecia textos descritivos e precisos.
"A Folha tinha obsessão pela precisão. E isso eu tinha. Por isso deu incrivelmente certo", lembra.
Dois anos depois, ela produziu a reportagem que considera a mais importante de sua vida, e olha que não era de economia. Foi a descoberta de que a Aeronáutica havia construído um poço de 320 metros na serra do Cachimbo, no sul do Pará, para testar bombas atômicas. "Brasil prepara local de teste nuclear" foi a manchete de 8 de agosto de 1986.
A reportagem seguiu por várias semanas e não foi assinada, pois temia-se retaliação do governo. Em 1991, o presidente Fernando Collor de Mello jogou uma pá de cal no poço, encerrando aquelas atividades na base.
Em "Instinto de Repórter", livro da Publifolha de 2005 (288 págs., R$ 20), Elvira conta os bastidores dessa e de outras dez reportagens investigativas, como o uso de policiais militares como seguranças de Collor durante a campanha presidencial de 1989.
Em meados dos anos 1990, a jornalista mudou-se para São Paulo e encontrou um novo tema para explorar: as telecomunicações.
"Eram os primórdios. Havia a Eletrobrás e as estatais de cada estado, como Telesp e Telerj", conta. E então teve início a era dos celulares, com todas as tramoias políticas e econômicas possíveis, grande parte delas investigadas e publicadas por Elvira Lobato.
Em 1998, uma série de reportagens suas sobre o sorteio de prêmios pelas redes de televisão foi fundamental para o governo proibisse a prática. Hoje, o assunto está quente de novo, pois o presidente Jair Bolsonaro acaba de sancionar lei que autoriza que as redes recriem os telessorteios, como eram chamados.
Um de seus interlocutores na Redação era o publisher Octavio Frias de Oliveira (1912-2007). "Seu Frias tinha muito interesse nos assuntos que eu cobria e vibrava com as reportagens. Quando fiz a primeira sobre os telessorteios, ele me chamou para parabenizar. Seu Frias tinha alma de repórter, como eu."
Ela diz que chegou a uma encruzilhada em sua carreira em 15 de dezembro de 2007, por conta de uma investigação sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, que havia comprado a Rede Record em 1990.
A igreja fazia 30 anos de atividade quando ela publicou "Universal chega aos 30 anos com império empresarial", no qual detalhava os negócios do conglomerado.
Elvira listava 23 emissoras de TV, 40 de rádio e outras 19 empresas em nome de 32 membros da igreja, a maioria bispos. Entre elas, empresas de seguro de saúde, imobiliária, agência de turismo e até uma de táxi aéreo.
Houve uma reação sem precedentes na história da imprensa brasileira. Cento e onze fiéis, a maioria pastores, entraram com processos judiciais contra a repórter e a Folha. Nenhuma linha da reportagem era questionada. "Eram ações por danos morais, por eu ter 'atacado' a fé deles", lembra ela.
Os processos foram abertos em pequenas cidades, as mais remotas, obrigando o jornal a enviar advogados e jornalistas para os quatro cantos do país. A Folha ganhou todos os processos, mas Elvira ficou incomodada.
"Na minha cabeça, jornalista bom era aquele que nunca foi processado. Se a reportagem estivesse correta, você estaria protegido. Ali, caí na real que não era bem assim, e não soube lidar com essa arma."
Elvira ganhou o Esso de 2008 pela reportagem --é uma das jornalistas mais premiadas do Brasil--, mas, três anos depois, resolveu parar e se aposentou.
Entretanto não parou. Em 2017, lançou "Antenas da Floresta" (Objetiva, 360 págs., R$ 62,90), resultado de uma reportagem a respeito dos jornalistas de pequenas emissoras de televisão nos estados amazônicos. Hoje ela colabora com a revista Piauí e mantém com seis colegas o site mulheres50mais.com.br, no qual escreve sobre as transformações por que passam as mulheres após os 50 anos.
Casada com Marcelo Beraba, ex-diretor da sucursal do Rio e e ex-ombudsman da Folha, Elvira tem três filhos, de dois casamentos, com 40, 37 e 29 anos. Nenhum deles seguiu a profissão dos pais. Pelo menos até agora, uma vez que três netinhos já chegaram no pedaço.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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