"Minha vida profissional foi um contínuo lançar de garrafas ao mar", escreveu o jornalista Clóvis Rossi na apresentação de seu livro de memórias, "Enviado Especial" (ed. Senac São Paulo), que lançou em 1999.
Assim como o náufrago que envia sua mensagem, explicou, o repórter não sabe como seu trabalho será recebido, interpretado ou compreendido.
Rossi, cuja morte completa um ano neste domingo (14), certamente estaria lançando garrafas ao mar em profusão, e com a agilidade que espantava seus colegas de profissão, caso estivesse testemunhando o atual cenário de ameaça à democracia e desgoverno no combate à pandemia.
Sua morte aos 76 anos, de infarto, privou o país de uma voz radical na defesa da democracia e intolerante com tentativas de fraudar a verdade.
"Ele estaria trabalhando muito, acompanhando tudo, indignado com o que estamos vivendo. Eu, às vezes, vejo uma notícia na TV e ainda consigo escutar meu pai xingando", diz a filha Claudia, também jornalista.
Rossi era crítico por natureza, diz ela, mas também se preocupava em explicar seu ponto de vista. "Não fazia a crítica pela crítica, embasava com o ponto de vista a ou b. Eu sinto muito falta disso. Além de pai, ele era uma boa fonte", diz.
Na Folha, onde era o decano da Redação, Rossi começou em 1980. Antes, havia passado por veículos como Correio da Manhã, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e IstoÉ, entre outros.
Ao longo de 40 anos, fez coberturas memoráveis de política, entre elas a da campanha pelas Diretas Já, e de eleições presidenciais. Foi correspondente em Buenos Aires, viajou por todos os continentes e era figura assídua no Fórum Econômico Mundial, em Davos, todo mês de janeiro.
Assinou a coluna São Paulo, na página A2 do jornal, durante anos, e ao morrer era colunista do caderno Mundo, além de membro do Conselho Editorial.
Parceiro em muitas coberturas e amigo de décadas, o repórter Ricardo Kotscho, 72, diz que Rossi estaria profundamente incomodado hoje com a perda de prestígio global do Brasil, algo que se agravou muito desde sua morte.
"Ele foi esperto, ele foi embora antes. Ele não ia suportar", brinca Kotscho. "O Clóvis passou a vida inteira viajando, viu como o Brasil se tornou importante. Não sei como lidaria com a imagem do país hoje", afirma.
Ambos se conheceram em 1967, quando Kostcho começou no Estado, aos 18 anos.
"Ele já era o chefe de reportagem da editoria de notícias locais. Eu estudava na ECA [Escola de Comunicações e Artes], e ele perguntou se eu não tinha mais colegas de faculdade para ir trabalhar lá. Ele renovou a equipe naquele momento", lembra.
Ao longo dos anos, Kotscho diz que se acostumou com o estilo do amigo, a um só tempo afável e questionador, que não poupava nem os mais chegados.
"Quando eu lancei um dos meus livros, pedi para ele fazer o prefácio. Ele esculhambou comigo, com o livro, e com o Brasil. Foi um prefácio contra. A editora me ligou preocupada, e eu expliquei que era o jeito do Clóvis", diz.
Apesar de certa acidez, afirma Kotscho, Rossi era um "apaixonado pelo jornalismo". "É isso que faz mais falta, figuras que sirvam de exemplo, de estímulo, de que vale a pena ser jornalista", diz.
Dentre as muitas relações próximas que Rossi construiu em sua paixão pelo jornalismo internacional, uma das mais profícuas foi com o espanhol Juan Arias.
Colunista e ex-correspondente do El País no Brasil, onde vive há 20 anos, Arias, 87, era interlocutor frequente do colega brasileiro. "Conversávamos muito sobre questões ligadas ao Vaticano, que era um interesse comum a nós", diz Arias, especialista em assuntos da Igreja Católica.
Após a Argentina, que Rossi considerava uma segunda pátria, a Espanha era o país estrangeiro que mais o interessava, desde que cobriu a agonia do ditador Francisco Franco, em 1975.
"Ele conhecia muito a Espanha e era muito reconhecido lá também. O Brasil é um país periférico, onde o jornalismo muitas vezes é fechado em seus assuntos internos. Mas Clóvis não era um jornalista provinciano, tinha um conhecimento da política internacional muito grande", afirma.
Para Arias, seria uma dificuldade conseguir mantê-lo em casa em meio à pandemia.
"Ele estava sempre com a antena conectada ao mundo. Não era um burocrata do jornalismo. Era um jornalista-raiz", conta.
Essa característica foi o que levou Rossi a ser admirado pelas novas gerações de jornalistas, diz a filha Cláudia, que organiza cursos de jornalismo. "Ele gostava muito do papel de entusiasmar os mais novos. Queria sempre pôr os jovens para pensar na nossa realidade e no papel da imprensa".
Em mais de 50 anos de profissão, o lado repórter de Clóvis Rossi frequentemente é o mais destacado por colegas, embora ele também tenha exercido funções relevantes como colunista e chefe de equipes.
Era também o que mais lhe dava prazer.
Em seu livro de memórias, Rossi lembra de duas coberturas em que, contra todos os sinais de que deveria recuar, seguiu em frente, "pavlovianamente": em 1974, no processo que levaria à independência de Moçambique, e 20 anos depois, na primeira eleição democrática da África do Sul.
Nos dois casos, a situação nas ruas era instável, e o mais sensato seria não entrar no avião.
Mas lá foi ele, atendendo ao anúncio de embarque no saguão do aeroporto e sem se arrepender, como explicou. "Se há um trabalho para ser feito, que seja feito, ainda que o bom senso grite o contrário aos ouvidos".
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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