Uma nota técnica do Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), encaminhada ao Ministério da Saúde, tenta desqualificar e reformular o Guia Alimentar para a População Brasileira, elogiado por cientistas e profissionais de saúde do país e de diversas partes do mundo.
O guia orienta que a escolha de alimentos seja baseada na chamada classificação Nova, que agrupa os produtos de acordo com o nível de processamento. Quanto mais processados, mais devem ser evitados, de acordo com a orientação do guia.
Para o Mapa, “o guia brasileiro é considerado um dos piores ..[e] a recomendação mais forte nesse momento é a imediata retirada das menções a classificação Nova no atual guia alimentar.”
Entre os exemplos de alimentos ultraprocessados estão salgadinhos de pacote, refrigerantes, biscoitos industrializados e alimentos prontos congelados, que passam por muitas transformações até assumirem a forma final.
Assinado por Eduardo Mello Mazzoleni e Luís Eduardo Pacifici Rangel, ambos da Secretaria de Política Agrícola do ministério, o documento afirma que a análise do guia “revela uma necessidade de urgente de sua revisão”, porque induziria a população a uma limitação "das escolhas alimentares".
“Quando um documento oficial do Governo Brasileiro orienta ‘evite alimentos ultraprocessados’, está generalizando algo que é muito diversificado [...] existem alimentos que são classificados nesta 'categoria ultraprocessados' e que são feitos industrialmente de forma semelhante a preparações culinárias caseiras.”
No documento, afirma-se que a regra de ouro, de preferir alimentos in natura e minimamente processados, pode ser perigosa, pois, diz a nota, seu consumo excessivo também estaria associado "a doenças do coração, obesidade e outras doenças crônicas, de forma semelhante às outras categorias de alimentos".
Outra questão levantada pelo Mapa é sobre a orientação de olhar os ingredientes de embalagens de alimentos. O guia recomenda evitar o alimento se houver muitos ingredientes desconhecidos.
“Existem normas para o uso de ingredientes nos alimentos e o poder público é responsável pelo seu controle. O consumidor tem o acesso a estas informações, que constam dos rótulos dos alimentos, para tomar suas decisões”, diz a nota.
Em resposta, o Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da USP, protagonista na construção do guia, cuja edição mais recente é de 2014, critica a nota técnica e defende a classificação Nova.
“Além de amparar todas as suas afirmações sobre a suposta incoerência da classificação Nova e sobre a suposta inocuidade dos alimentos ultraprocessados em duas referências que não se referem à classificação e não avaliam alimentos ultraprocessados, a nota técnica omite a vasta literatura científica nacional e internacional acumulada desde 2009, quando a classificação e o conceito de alimentos ultraprocessados foram propostos pelo Nupens/USP."
Na contagem dos pesquisadores, já são mais de 400 estudos baseados na classificação. Para eles há uma “associação inequívoca” entre consumo de alimentos ultraprocessados com o risco de doenças como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e AVC.
A investida do Mapa chocou nutricionistas, que têm se organizado para dar uma resposta em defesa da publicação.
“Até hoje ele é bastante citado por órgãos internacionais como um dos melhores guias alimentares do mundo. Ele norteia condutas nutricionais e médicas. O que é posto na nota técnica com certeza tem notas de interesse políticos e de outros setores. É preciso ter muita cautela”, diz Aline de Piano Ganen, coordenadora do mestrado em nutrição do Centro Universitário São Camilo.
Pesquisadores atribuem as tentativas de mudança a pressões da indústria de alimentos.
A Abia (Associação Brasileira das Indústrias de Alimentos) diz que a classificação de alimentos por nível de processamento no guia é "mal definida, utiliza suposições e termos amplos que trazem inconsistência, confusão e incerteza aos consumidores e sem nenhuma consideração objetiva do perfil nutricional".
Segundo a associação, o guia não considera o valor nutricional absoluto de alimentos e bebidas, nem a densidade de nutrientes neles presentes. "Com isso, destoa substancialmente do foco empregado por órgãos competentes internacionais em relação às diretrizes alimentares para reduzir o risco de doenças crônicas não transmissíveis."
Para a Abia, "uma revisão do Guia Alimentar contemplando todos os alimentos de forma justa e também com a participação de profissionais como engenheiros, pesquisadores e cientistas de alimentos ampliará a discussão e trará benefícios à população brasileira".
A associação nega que haja pressão do setor produtivo, apenas "manifestações legítimas de desacordo com a atual edição do documento", que deve ser levada a debate para que "se construa uma alternativa mais eficaz para a população brasileira".
O Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª região (SP e MS) publicou em nota que “o guia apresenta um conjunto de informações, análises, recomendações e orientações sobre escolha, combinação, preparo e consumo de alimentos que objetivam promover a saúde de pessoas, famílias e comunidades e da sociedade brasileira como um todo, além de reforçar que uma alimentação adequada e saudável precisa ser balanceada, deve priorizar os alimentos in natura e minimamente processados".
Para a entidade, as recomendações “valorizam a maior interação social e o prazer que a alimentação proporciona ao indivíduo”.
Em sua nota, o Nupens rebate ainda a afirmação de que o guia seria um dos piores do mundo, lembrando entidades e ministérios que o tomam como exemplo —a FAO, a OMS e o Unicef, da ONU; os ministérios da Saúde do Canadá, da França, do Uruguai, do Peru e do Equador, que basearam seus guias no brasileiro.
“Diante da fragilidade e inconsistência dos argumentos apresentados na nota técnica do Mapa e da absurda e desrespeitosa avaliação do Guia Alimentar brasileiro, confiamos que o Ministério da Saúde e a sociedade brasileira saberão responder à altura o que se configura como um descabido ataque à saúde e à segurança alimentar e nutricional do nosso povo”, encerram os cientistas.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde, responsável pela publicação do guia, disse não ter recebido a nota técnica com sugestões de modificações no guia.
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