Hospitais, médicos e instalações de saúde viram alvo em zonas de conflito

Tratados internacionais afirmam que infraestruturas de atendimento a civis não podem ser atacadas

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Stephanie Nolen
The New York Times

A explosão no Hospital Ahli Arab na cidade de Gaza na última terça-feira (17) foi o mais recente de uma série crescente de incidentes violentos que envolvem instalações médicas em zonas de conflito. Juntos, eles têm causado grande impacto na infraestrutura de assistência médica e seus profissionais de saúde, violando o que uma vez foi aspecto fundamental do direito internacional.

Nas últimas duas décadas, à medida que o princípio de poupar trabalhadores e instalações de saúde tem se desgastado, os incidentes mais perigosos ocorrem por atores estatais, diz Michiel Hofman, coordenador operacional de Médicos Sem Fronteiras no Sudão e veterano de entrega de ajuda médica no Afeganistão, Iêmen e Síria.

As consequências de um ataque aéreo dos Estados Unidos ao hospital Médicos Sem Fronteiras, que matou 42 pessoas, em Kunduz, Afeganistão
As consequências de um ataque aéreo dos EUA ao hospital Médicos Sem Fronteiras em Kunduz, no Afeganistão, em 14 de outubro de 2015 - The New York Times

No entanto, o Artigo 18 da Primeira Convenção de Genebra, ratificado pelos Estados-membros da ONU (Organização das Nações Unidas) após a Segunda Guerra Mundial, diz que os hospitais civis "não podem, em circunstância alguma, ser objeto de ataque, devem ser sempre respeitados e protegidos pelas partes em conflito".

O Artigo 20 da convenção diz que os trabalhadores de saúde também devem ser protegidos por todos os lados.

"A disposição dos Estados em ultrapassar os limites do direito humanitário internacional parece ter acelerado", diz Hofman. "São os Estados que assinaram explicitamente as Convenções de Genebra, e geralmente têm um poder militar muito maior, especialmente aéreo".

Na Ucrânia, a Rússia realizou mais de 1.100 ataques a instalações e profissionais de saúde desde o início da guerra o há 21 meses, um número impressionante para um período tão curto, diz Leonard Rubenstein, especialista em saúde e direitos humanos da Universidade Johns Hopkins.

Rubenstein preside a Coalizão de Proteção à Saúde em Conflito, que é composta por mais de três dezenas de organizações de direitos humanos e humanitárias que trabalham em zonas de conflito, rastreando ataques à saúde em todo o mundo.

Ele diz que o padrão de ataques russos mostrou que Moscou, em alguns casos, tem como alvo hospitais intencionalmente e, em outros, atacou indiscriminadamente áreas onde os hospitais estavam localizados. Ambos são crimes de guerra. "Eles são irresponsáveis, com total impunidade", afirma. "Eles não se importam".

Nem os soldados ou comandantes russos, nem qualquer outro ator estatal ou paramilitar que tenha atacado locais médicos, com uma exceção, enfrentaram processos por órgãos internacionais, acrescenta. "Há amplo acordo na comunidade internacional de que ataques à saúde são inaceitáveis", diz. "Mas não há um compromisso real dos governos em fazer o que é necessário para impedi-los".

A única vez que um ataque deliberado a um hospital foi encaminhado para julgamento em um tribunal internacional envolveu a guerra na Bósnia. A acusação foi uma das sete contra um comandante militar sérvio considerado pelo tribunal que investiga crimes de guerra na antiga Iugoslávia.

O Tribunal Penal Internacional, criado pela Nações Unidas há 21 anos para processar crimes contra a humanidade, nunca emitiu uma acusação por um ataque profissionais da saúde ou infraestrutura.

Os ataques a instalações médicas colocam em risco o atendimento médico não apenas dos feridos em combate, mas de todos aqueles com necessidades médicas de rotina. Na quinta-feira, a organização Médicos Sem Fronteiras retirou uma equipe cirúrgica de um hospital no Sudão depois que as autoridades militares bloquearam a entrega de suprimentos para a instalação. A equipe estava realizando cirurgias de trauma e cesarianas em um dos últimos hospitais em funcionamento na capital, Cartum.

"É tão doloroso, por causa do sofrimento moral dos médicos", diz Hofman. Eles não conseguiam trabalhar sem suprimentos básicos, mas também ficaram profundamente perturbados por cortar uma das últimas fontes de atendimento em uma cidade onde os combates não cessaram desde que facções rivais do governo militar entraram em guerra em abril.

Na Ucrânia, os ataques russos destruíram de 10% a 15% das instalações médicas. O dano é ainda mais abrangente do que parece, diz Pavlo Kovtoniuk, ex-vice-ministro da saúde da Ucrânia que agora trabalha em um think tank chamado Centro de Saúde Ucraniano.

"Os hospitais simbolizam o respeito pela vida civil, e quando as pessoas veem isso sendo desconsiderado, elas dizem: 'Temos que sair'", afirma ele. "Temos uma enorme perda de capital humano, com mais de 6 milhões de pessoas agora vivendo fora das fronteiras".

Entre aqueles que permanecem, há uma população crescente que precisa de reabilitação e apoio psicossocial, de um sistema de saúde cada vez mais reduzido.

"Este não é um caso de fazer guerra de acordo com as leis da guerra e a Convenção de Genebra — esta é uma filosofia de guerra completamente diferente, onde as vidas civis são completamente desconsideradas", diz Kovtoniuk. Ele acrescenta: "Estamos revisitando as regras que pensávamos serem dadas em relação à proteção da vida civil, e a Rússia contribuiu para esse sentimento de 'Ok, podemos fazer isso. Podemos atacar infraestruturas civis como arma de guerra'".

No Sudão, o Médicos Sem Froteiras afirma que as mortes causadas por necessidades médicas negligenciadas são tão grandes quanto as causadas por ferimentos violentos. De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), 70% das instalações médicas do país não estão mais funcionando. Mais de 7 milhões de pessoas estão agora deslocadas internamente e enfrentam uma cascata de surtos de doenças.

"O atendimento médico já era terrível, e qualquer atendimento especializado que tínhamos estava concentrado esmagadoramente em Cartum e agora não está mais funcionando", diz Yasir Yousif Elamin, presidente da Associação de Médicos Sudaneses Americanos. "Os lugares capazes de realizar cirurgia cardíaca, neurocirurgia, tratamento de câncer, diálise — todos esses estão fora de serviço agora".

No mês passado, na cidade de Wad Madani, Elamin conheceu uma criança de 5 anos que havia sido baleada no abdômen em Cartum. Sua mãe a havia levado centenas de quilômetros em busca de ajuda. "Imagine que você não tenha algo tão básico assim, para um menino atingido acidentalmente", diz ele.

Os pesquisadores começaram a rastrear os ataques às instalações de saúde em zonas de conflito de forma organizada apenas no início dos anos 2000, então é difícil falar com muita certeza sobre a tendência, diz Rubenstein.

Mas em uma análise dos números de 2022, a Safeguarding Health in Conflict disse que os 1.989 incidentes contabilizados representavam "de longe o maior número" documentado desde que a coalizão começou a relatar há uma década.

Após a Ucrânia, que representou quase metade dos incidentes, o país mais afetado foi Mianmar. Mais de 800 profissionais de saúde foram presos lá desde o golpe militar em 2021.

Entre 2014 e 2016, houve uma série de bombardeios horríveis a instalações médicas no Afeganistão, Síria e Iêmen — incluindo um ataque aéreo dos Estados Unidos a um centro de trauma administrado pela Médicos Sem Fronteiras em Kunduz, Afeganistão, em 2015, que matou 42 pessoas. (O Pentágono chamou de "acidental".)

A violência levou o Conselho de Segurança da ONU a adotar por unanimidade uma resolução pedindo maior proteção aos profissionais e instalações de saúde em conflitos armados, o que trouxe "um pouco de alívio", afirma Hofman. No entanto, esse tipo de ataque aéreo continuou na Síria.

"Mas agora, com quatro grandes guerras eclodindo nos últimos anos — Etiópia, Ucrânia, Sudão e agora Gaza — estamos novamente em um pico", diz ele.

Houve mais de 115 ataques a instalações e atendentes de saúde na Cisjordânia e na Faixa de Gaza desde o início dos ataques do Hamas em 7 de outubro. Israel pediu a evacuação de 20 hospitais no norte de Gaza em antecipação a uma invasão terrestre, mas médicos palestinos dizem que é impossível mover os pacientes.

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