Após realizar um preenchimento labial com ácido hialurônico, a empresária Pamela Andrade, de 23 anos, sofreu um forte inchaço na boca, no rosto, nos olhos e pensou que os sintomas fossem efeito colateral do procedimento estético.
A região da face ficou tão inchada que, ao divulgar o alerta em seu perfil no Tik Tok, algumas pessoas pensaram que as imagens postadas eram montagem.
Para sua surpresa, os sintomas eram devido uma doença genética rara que, por muitos anos, foi negligenciada pelos médicos e atribuída a alimentos. "Eu voltei na hora para clínica e não relacionei com a doença. Achei que tinha ocorrido algo errado", diz em entrevista à BBC News Brasil. O primeiro sinal começou com na parte de cima dos lábios.
"É normal inchar, mas não daquele jeito. Me levaram ao hospital, tiraram fotos e nunca tinha acontecido nada daquela forma. Fiquei tomando soro e cheguei a ouvir do médico que era alergia ao ácido hialurônico. Tomei um antialérgico e fiquei esperando", conta.
Mesmo recebendo medicação, o inchaço não passou por completo e Pamela só voltou a ter o rosto "normal" depois de quase oito dias.
Primeiros sintomas começaram na adolescência
Por muitos anos a jovem acreditou que o inchaço que tinha no corpo era por causa de alimentos. Uma vez, ao comer pipoca com bacon, seu rosto e mãos ficaram bem inchados e ela relacionou a alteração à comida.
A empresária recorda que os primeiros sinais começaram na adolescência e, aos 17 anos, chegou a ir para o hospital. "Uma vez ficou bem feia a alergia, mas sempre foi tratada como algo alimentar. Aplicavam corticoide, mas não dava resultado", relembra.
Em algumas ocasiões, o inchaço ocorria até depois de ela bater o celular nos lábios. "Estava mexendo no celular, caía e batia na boca, por exemplo, aí desencadeava uma crise. Mas sempre que ia ao médico, era tratado como uma alergia alimentar", diz.
"Minha mão já chegou a inchar e, posteriormente, o intestino incha também. Parecia uma gastrite e eu vomitava bastante", afirma.
Quando já estava adulta, começou a suspeitar que não era somente uma irritação alérgica provocada por comida. Da última vez que teve a crise, após o procedimento estético, decidiu investigar mais a fundo.
Descoberta de doença rara
Após o inchaço diminuir, a jovem procurou um alergologista, pois os sinais relacionados aos alimentos não faziam sentido. Ao chegar no consultório, informou os sintomas e a médica pediu exames específicos. "Ela fez várias perguntas que batiam com uma doença e tive que fazer um exame raro de sangue e só um laboratório fazia", destaca.
O primeiro resultado deu inconclusivo e foi preciso refazer o teste. Ao analisar o segundo exame, foi constatado que ela sofria com angioedema hereditário, doença genética rara. Mesmo seus pais não tendo o problema, ela acredita que herdou a condição da tia, que também sofria com inchaços quando era viva.
Na época, o medicamento para tratar o problema custava em torno de R$ 8 mil e era preciso entrar na Justiça para adquiri-lo.
No entanto, a médica também encaminhou a jovem para o ginecologista, pois o anticoncepcional tomado durante anos poderia ser um dos fatores desencadeantes das crises alérgicas. "Eu tomava desde os 15 anos, pois tenho ovário policístico. O médico me fez parar os métodos com estrogênio. Tomava pílula só com progesterona", disse.
Desde que substituiu a composição do remédio anos atrás, ela não teve mais nenhum sintoma alérgico. Atualmente, optou por não usar nenhum tipo de hormônio. "O anticoncepcional era como um gatilho para as crises", destaca.
Depois de muita investigação, ela descobriu que o trauma gerado pela agulha durante o preenchimento labial foi o motivo pelo inchaço e crise após o procedimento na clínica de estética. "Não foi o ácido hialurônico, mas sim a agulha", diz.
Importância do diagnóstico correto
Ao publicar seu relato nas redes sociais, Pamela recebeu diversos comentários de outras pessoas que, provavelmente, sofrem com o problema, mas até hoje não sabem que têm a doença. Somente em uma única postagem, o vídeo tem pouco mais de quatro milhões de visualizações e 534 mil curtidas.
Segundo a jovem, o conteúdo foi feito como alerta para que outras pessoas também possam receber um diagnóstico precoce e seguir com o tratamento correto. "Se eu tivesse sido tratada corretamente não teria tomado tantos corticoides, adrenalina e poderia ter descoberto que era o anticoncepcional que causava o problema e evitado muitas crises", ressalta.
Além da face, ela também sofria com inchaço no intestino e acreditava que o incômodo era algo gastrointestinal ou outro problema. "Eu faltava muito no trabalho, pensava que era gastrite e tomava remédio. Mesmo assim, os sintomas só melhoravam depois de três ou quatro dias", conta.
"São sintomas que você vai no pronto-atendimento e os médicos tratam como alergia e gastrite, dão medicação, mas esse remédio não faz efeito nenhum e resulta em um sofrimento muito grande".
Hoje, ela já está há algum tempo sem nenhuma crise e celebra, mesmo que tarde, a descoberta da doença. "Tenho uma vida totalmente normal e não tive mais nenhum inchaço."
O que é o angioedema hereditário?
É uma doença genética rara, que acomete 1 em cada 50 mil pessoas e que os principais sintomas são ataques de inchaços deformantes.
"Acomete principalmente o rosto, mas também pode atingir as extremidades como mãos e pés, deixando-os bem assimétricos. Pode ainda atacar a genital e pegar a via respiratória como língua, laringe e provocar um edema de glote. Também pode ter edemas nas alças intestinais, provocando dores abdominais", explica Marcelo Aun, professor de Imunologia da Graduação em Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein.
O tipo mais comum é o chamado angioedema com deficiência no inibidor de C1 esterase. Esta é uma proteína responsável por controlar a ativação de outras proteínas da nossa imunidade que são conhecidas por "sistema complemento".
Assim como ocorreu com Pamela, traumas locais podem desencadear e aumentar as crises alérgicas. "Os traumas são fatores importantes no desencadeamento e geralmente as crises iniciam algum tempo depois no local traumatizado, ainda que seja de baixa intensidade", destaca Alex Isidoro Ferreira Prado, imunologista da USP (Universidade de São Paulo ) e especialista da equipe técnica da Clínica Croce.
Os anticoncepcionais com estrogênio também podem aumentar as crises alérgicas, piorando os inchaços. "No caso do angioedema hereditário, o estrógeno pode desencadear as crises e está presente em anticoncepcionais combinados, reposição hormonal e durante o ciclo menstrual", diz Anete Grumach, membro do Departamento Científico de Imunodeficiências da ASBAI (Associação Brasileira de Alergia e Imunologia).
Segundo a especialista, o estrógeno atua nos sistemas controlados pelo inibidor de C1, resultando em aumento de bradicinina, que é a responsável direta pelas crises do angioedema. Geralmente, quando mulheres querem continuar com métodos contraceptivos, o recomendado é usar somente os à base de progesterona.
É importante um diagnóstico precoce, já que as crises alérgicas podem atrapalhar a qualidade de vida do paciente. Contudo, os médicos destacam que, em muitos casos, pode levar anos, já que a própria classe médica em alguns casos trata como alergia a alimentos ou medicações.
Existe tratamento?
Embora seja difícil o diagnóstico, a linha terapêutica é mais acessível aos pacientes e o tratamento deve ser feito por um médico imunologista.
A pessoa pode receber medicações nas crises e remédios que vão impedir novas profilaxias. Alguns indivíduos também podem adquirir medicamentos profiláticos antes de procedimentos cirúrgicos em locais de risco como a face.
Existem tratamentos mais antigos e que podem ser fornecidos pelo SUS, como os andrógenos atenuados e medicamentos como o ácido tranexâmico. "Temos medicamento para prevenção de crise, que é um comprimido à base de hormônio masculino, mas às vezes falta no SUS", reforça Aun.
Algumas medicações novas agem diretamente na doença, bloqueando, por exemplo, a bradicinina, substância importante nas crises. Outros tratamentos fornecem ao paciente a proteína que ele não produz, chamada inibidor de C1. Há ainda medicações injetáveis, mas que são de alto custo e não estão disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde).
Os especialistas destacam que cada tratamento deve ser avaliado individualmente e que a pessoa nunca deve se medicar sozinha. "Quando não tratada adequadamente, a doença pode levar a óbito em até 40% dos casos pelo angioedema de laringe, gerando asfixia", diz o especialista da USP.
"Pacientes devem sempre se atentar para gatilhos, evitar as crises e utilizar profilaxias. Cada orientação deve ser individual, mas no geral deve-se evitar traumas, esportes de alto impacto, cuidado com procedimentos odontológicos e estéticos", conclui o especialista.
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