Ao atender pacientes estrangeiros no Hospital Israelita Albert Einstein, na zona sul de São Paulo, Cinthia Bernardo, 32, precisa ter o inglês na ponta da língua. Para sair do básico que aprendeu na escola pública, a secretária executiva foi atrás de uma bolsa de estudos.
Desde 2019, Cinthia frequenta as aulas da Cultura Inglesa em Paraisópolis. A escola oferece o curso gratuito para moradores da favela que comprovem renda de até três salários-mínimos.
"Os pacientes perguntavam em inglês sobre a localização do hospital, sobre os médicos, e era difícil responder", diz ela. "Hoje consigo me virar tanto no telefone quanto presencialmente."
André Luiz Lima, 19, conseguiu vaga neste ano. "Fiz vários cursos gratuitos, mas queria algo melhor para trabalho e para viajar", diz o estudante. Como mora com outras sete pessoas na favela, diz contar com o silêncio delas na hora de assistir às aulas, ainda em formato híbrido em função da pandemia. "Dá para estudar pelo celular, tem música e jogo."
São mil alunos atendidos, com outros 3.000 na lista de espera. O material de apoio é dividido entre os estudantes, que não pagam pelos livros e nem pelo curso, com mensalidades a R$ 345 a alguns quilômetros dali.
"Menos de 5% dos brasileiros falam inglês, então sempre foi barreira de classe e maneira de não ter diversidade", afirma Gustavo Fuga, fundador da 4You2 Idiomas e finalista do Prêmio Empreendedor Social de Futuro em 2015.
Levantamento realizado pela Folha em fevereiro deste ano apontou que a prova de inglês prejudica o desempenho geral dos estudantes de escolas públicas no Enem, principal porta de entrada para o ensino superior.
A análise do exame entre 2010 e 2019 mostrou que inglês representou 46% das questões que mais prejudicaram a rede pública, apesar de somar apenas 3% do exame total.
A 4YOU2 oferece planos a partir de R$ 79 mensais com professores estrangeiros em locais periféricos como Capão Redondo, Jardim Ângela e Campo Limpo, em São Paulo.
O foco é a conversação. Ao invés dos livros, um aplicativo com inteligência artificial e reconhecimento de voz ajuda na gramática. "Conseguindo falar, o aluno se motiva, senão ele desiste no verbo ‘to be’", diz Fuga.
Para a estudante Luana Rotermund, 19, o inglês foi essencial para decidir embarcar para um intercâmbio na Inglaterra neste mês. Fará trabalho voluntário antes de ir para o ensino superior. "O ponto fraco era me comunicar e agora me sinto segura", afirma.
Ela frequentava desde 2019 as aulas na unidade Capão Redondo. "Tive aulas com professores de lugares como Canadá, Guiana e Síria, então diversos sotaques me marcaram, não só o estadunidense."
As aulas temáticas, do hip hop à crise do clima, ajudam a criar referências linguísticas contemporâneas. "Tinha tópicos que na escola ainda eram levados como tabu", diz Luana. Ela também recorda de aulas sobre entrevistas de emprego, algo que nunca teve no colégio em que era bolsista.
Gustavo Fuga aposta que o país vive uma transição acelerada pela tecnologia. "Com empregos remotos e a flexibilização de leis, não tem mais como falar de futuro do trabalho sem inglês em nenhuma área, em nenhum nível", afirma.
Para Marcos Noll Barboza, CEO da Cultura Inglesa, na pandemia o mercado de trabalho se tornou globalizado para diversas atividades. "A barreira geográfica diminuiu e a última fronteira é o domínio do inglês", afirma.
Nesse sentido, ele diz que iniciar o projeto em Paraisópolis foi escolha acertada, pois a comunidade é organizada e aberta à experimentação.
"Ficamos preocupados que os alunos não conseguissem migrar para o remoto, pois sabemos das restrições de acesso", diz Barboza. "Estávamos errados, tivemos um percentual grande de estudantes que conseguiram, com criatividade e esforço, criar condições de continuar estudando."
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