O fechamento das escolas empurrou milhões de alunos — e seus professores — para a frente de computadores, tablets ou smartphones. Esta tem sido a maneira encontrada em grande parte das escolas para que os estudos não sejam totalmente interrompidos enquanto o isolamento durar.
Se a presença das telas em nossas vidas já era um caminho sem volta bem antes do coronavírus, agora, com a necessidade de distanciamento físico, essa situação ficou ainda mais evidente.
E, com isso, uma deficiência antiga está cobrando seu preço: mesmo com todo o acesso aos dispositivos e às redes, as crianças e os jovens não vinham recebendo a mediação adequada para navegar com confiança nesse meio, nem as oportunidades de desenvolver as habilidades para tirar o melhor do que a internet pode oferecer.
As iniciativas para educar para essa nova realidade são esparsas. Perdemos o tempo de uma geração com a desculpa de que os jovens de hoje são “nativos digitais” – ou seja, diferentemente de seus responsáveis, já teriam nascido sabendo lidar com o mundo conectado. Hoje sabemos que isso não é verdade.
Um estudo da Universidade de Stanford provou que, embora os jovens sejam bem habilidosos como usuários de mídias sociais, demonstram pouco ou nenhum discernimento sobre o conteúdo que lá encontram. E o problema vai muito além da desinformação: percebemos que os jovens tampouco têm o hábito de refletir sobre a prática da autoexpressão positiva e responsável, embora produzam cada vez mais conteúdo.
Ao forçar o aprendizado mediado pelas telas, o novo contexto pode ser também uma oportunidade para refletirmos de forma mais intencional sobre a cultura digital. Formar os jovens para o uso crítico, consciente e proativo da informação e da comunicação na sociedade conectada é obrigatório segundo a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que não deixa de ser um diagnóstico de que existem questões relativas ao mundo digital que precisam ser tratadas urgentemente com os jovens. Autoimagem, privacidade, exposição, função e poder da comunicação, o mundo das influências e influenciadores digitais são só algumas delas.
O ambiente educativo é um dos mais adequados para discutir tudo isso porque permite tratar desses temas coletivamente, extraindo reflexões e acordos, e também favorecendo o uso produtivo e fortalecedor dos dispositivos, em espaços e horários combinados.
É urgente promover o consumo consciente da tecnologia, entendendo como ela age sobre nós, que ideologias estão implícitas em sua construção, que partes do seu design são problemáticas, como os algoritmos nos impactam.
É também fundamental entender as enormes oportunidades que temos hoje por meio da tecnologia de construir e compartilhar conhecimento, acrescentar nossa voz às discussões da sociedade e participar da resolução de problemas.
Inserir essa camada de reflexão e orientação sobre o ambiente midiático e informacional no momento em que as telas fazem obrigatoriamente a mediação do aprendizado e das nossas relações sociais é um duplo desafio. É como trocar o pneu com o carro em movimento.
Ainda assim, não podemos perder essa chance. É essencial deixar de tratar a tecnologia como um componente ocasional e isolado em sua caixinha. Projetos pontuais que tratam dos perigos da internet ou de questões como bullying, por exemplo, são valiosos, mas insuficientes, e não alcançam a multiplicidade de temas de que devemos tratar.
Em um mundo em que as telas mediam as nossas relações de comércio, relacionamentos e fluxos de informação, não faz mais sentido separar as noções de "cidadania" e "cidadania digital". Se as crianças agridem e excluem os amigos no grupo de WhatsApp, por exemplo, precisamos enfatizar que acolhimento, respeito, inclusão e a prática da comunicação não-violenta são valores que devem imperar nas relações, sejam elas online ou offline.
Hoje também faz parte da noção de cidadania entender a nossa responsabilidade na manutenção de um ambiente de comunicação saudável, identificando boatos, fakes, manipulação e desinformação de todos os tipos.
Os jovens precisam entender que a qualidade das nossas informações afeta as nossas decisões e, portanto, a nossa experiência comum em sociedade. Educar para a leitura crítica das mídias é a forma mais eficaz de combater o caos informacional em que nos encontramos hoje, uma habilidade ainda mais vital em tempos de crise sanitária e infodemia.
Formar cidadãos que saibam fazer escolhas livres e responsáveis passa necessariamente pela construção de uma relação mais consciente com a informação, sobretudo no ambiente digital. A pandemia nos apresenta o desafio e a oportunidade de ressignificar as telas, explorando-as dentro do contexto do aprender a aprender e da construção de uma cidadania plena.
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