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Como discutir a exposição de crianças na internet?

Com atividades básicas, escola pode abordar empatia, consentimento e cyberbullying

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Em outubro deste ano, o cantor MC Gui ganhou as manchetes dos portais de notícias por ter filmado e publicado, no Instagram, um vídeo em que ele e amigos riam de uma menina fantasiada em um trem dos parques da Disney. Nas imagens, que ganharam a internet, a criança parece notar que está sendo gravada e se mostra constrangida com a situação.

A cena revoltou seus seguidores, que logo passaram a comentar e compartilhar o ocorrido em outras redes sociais, criticando a atitude do artista mas, ao mesmo tempo, disseminando a filmagem e dando continuidade à exposição da garota. Ninguém pensou em preservá-la borrando seu rosto, por exemplo. Pressionado, MC Gui apagou a gravação e fez outra, desculpando-se pelo comportamento. 

MC Gui foi acusado de bullying por rir de criança na Disney - Instagram/MCGui

É preciso lembrar que a filmagem e o compartilhamento da imagem da criança em questão não tiveram a autorização dos seus responsáveis. Apesar do caso ter acontecido fora do Brasil, sabemos que fotografar, gravar e compartilhar são práticas corriqueiras e tão automatizadas no nosso cotidiano que raramente fazemos uma reflexão antes de clicar em “publicar”.

Crianças e jovens, além de terem o direito de preservação da imagem assegurado pelo artigo 5º da Constituição Federal, são protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente que, em seu artigo 17, proíbe a exposição de menores de idade a situações vexatórias. Este artigo do ECA é especialmente importante se lembrarmos que, cada vez mais cedo, a internet passa a fazer parte da vida das pessoas.

Cerca de 24,3 milhões de crianças e adolescentes, com idade entre 9 e 17 anos, são usuários da web no Brasil, o que corresponde a cerca de 86% da população nessa faixa etária, segundo dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2018, divulgada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Mesmo que muitas redes sociais exijam idade mínima de 13 anos para a criação de um perfil, para justamente evitar a exposição de menores, o controle para isso não é nada rígido. Os riscos em torno da disseminação das imagens são vários, que passam por roubo de identidade (ou criação de “fakes”), exploração/assédio sexual e cyberbullying (intimidação ou discriminação), para citar apenas alguns. A SaferNet Brasil, entidade social dedicada a questões de segurança digital, tem uma cartilha voltada para o público infantil e adolescente em que ilustra procedimentos básicos que devem ser adotados por eles nas redes sociais.

Ademais, é comum pais e mães compartilharem fotos de família nas plataformas. Um estudo da empresa de segurança digital AVG com dados de cidadãos de 10 países mostra que três a cada quatro crianças com menos de dois anos têm fotos on-line. Já o aplicativo Local Babysitter apontou que, em média, os pais norte-americanos de crianças menores de 6 anos publicam 2,1 informações por semana sobre elas, o que gera um rastro digital que pode ser utilizado para diferentes fins.

Evidentemente, as famílias têm grande responsabilidade na navegação segura de suas filhas e seus filhos, mas a escola pode – e deve – atuar nesse sentido. Observando as dez competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que devem guiar o trabalho docente em todas as disciplinas, algumas delas – como comunicação, empatia/cooperação, responsabilidade/cidadania e cultura digital – embasam a ação escolar em prol da conscientização dos jovens sobre o uso seguro das redes no que diz respeito à disseminação de imagens. 

Em cultura digital, por exemplo, o documento exige que crianças e adolescentes desenvolvam, até a conclusão do ensino fundamental, habilidades referentes à utilização de ferramentas digitais, produção multimídia e uso ético desse universo. Ou seja: os estudantes precisam ser incentivados a pensar de maneira reflexiva sobre o uso das ferramentas, e não apenas dominá-las. 

É necessário que os jovens ponderem sobre a intenção de criar ou espalhar uma imagem pela internet. Isso pode ser feito com atividades que envolvam a produção de um blog, uma galeria de imagens ou um canal no YouTube para um determinado assunto de uma disciplina. 

Caso a infraestrutura da escola não permita a realização dessas atividades, é possível fazer essa reflexão com alunos e alunas por meio de outras peças midiáticas “analógicas”, como uma reportagem de jornal ou revista ou mesmo posts impressos.

Uma aula sobre mudanças climáticas poderia abordar, por exemplo, o uso de fotos da ativista Greta Thunberg, a adolescente sueca que liderou a greve global pelo clima em setembro e se tornou um fenômeno midiático. Ao analisar memes e matérias envolvendo a moça, as turmas podem debater sobre questões como:

  • Quem pode se beneficiar dessa imagem?
  • Quem pode ser prejudicado?
  • Quem tem os direitos dessa foto/montagem? Por quê?
  • Que tipos de pessoas estão representadas ou foram privilegiadas? E quais foram omitidas ou apagadas?
  • Estou sendo responsável com os envolvidos/as ao compartilhar essa imagem? 
  • A pessoa que ali aparece consentiu com a publicação? 
  • Estou sendo empático/a ao publicar ou compartilhar essa foto? 
  • Se eu estivesse nessa foto, eu gostaria que ela fosse publicada? Por quê?
  • Que tipo de consequências haverá para mim e para as pessoas retratadas?

Vale destacar que a própria escola deve tomar esses cuidados ao divulgar suas atividades com estudantes em algum canal da internet, levando em conta a autorização dos responsáveis e critérios para evitar que os registros possam gerar constrangimento atual ou futuro.

Sabemos que tendência é que as próximas gerações tenham suas vidas documentadas e acompanhadas pelo público nas redes sociais, quase como ocorre com o personagem de Jim Carrey em O Show de Truman (1998), filme que conta a história de um homem cuja vida é transmitida em forma de reality show 24 horas por dia – só que sem ele saber disso, o que gera diversos conflitos ao longo da narrativa. Na ficção ou na vida real, a disseminação de imagens sem consentimento gera inúmeras consequências, e é cada vez mais urgente que essa reflexão passe a fazer parte do nosso dia a dia.

Mariana Mandelli

Coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta

Isabella Galante

Jornalista do Instituto Palavra Aberta

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