Aos 13 anos de idade, Marina decidiu parar de estudar. A gota d’água foi o dia em que teve que se esconder em um posto de saúde ao ser perseguida a caminho da escola. Mas ela já vinha acumulando o peso de outras violências que via e vivia no colégio.
“Chupeta de baleia”, “perereca zoiuda” e “esquisitona” eram alguns dos apelidos que escutava frequentemente por ser “gordinha” e ter olhos grandes. Um professor chegou a dizer que ela tinha um grau de autismo por não entender a matéria, outra jogava o apagador nos alunos.
Uma vez por mês, discussões entre colegas terminavam em confusão ou até briga física. “Esse tipo de coisa acumulou, e perdi a vontade de estudar”, diz ela, hoje aos 17 anos e cursando o 2º ano do ensino médio, porque perdeu um ano na escola.
O sentimento de adolescentes como Marina —seu nome foi trocado para preservar sua identidade— foi alvo de uma pesquisa lançada recentemente que mostrou que 52% dos estudantes da rede pública não se sentem seguros no colégio, principalmente meninas e negros.
A ONG Visão Mundial, que tem projetos na área da infância e adolescência, entrevistou 3.814 alunos de 9 a 17 anos em agosto e setembro de 2018, em 67 escolas públicas de sete municípios onde atua no país, sobretudo no Nordeste.
Isso inclui as capitais Salvador (BA), Fortaleza (CE) e Recife (PE), além das cidades de Nova Iguaçu (na zona metropolitana do Rio de Janeiro), Canapi e Inhapi (em AL, com 18 mil habitantes) e Governador Dix-Sept Rosado (no sertão do RN, com 12 mil moradores).
“A informação sobre violência contra a criança ainda é muito precária no Brasil. Os dados vêm basicamente do Disque 100 [do governo federal] e da saúde, e eles são muito importantes para criar políticas públicas”, ressalta Karina Lira, especialista em proteção à infância da ONG.
O pior resultado apareceu na cidade de Marina, Nova Iguaçu, que fica na Baixada Fluminense, uma das regiões mais violentas do estado. Ali, 68% dos estudantes se sentem inseguros no ambiente escolar, índice bem acima da média.
“A escola, que deveria ser esse espaço de formação cidadã e diálogo, acaba sendo o espaço onde eles presenciam conflitos. Isso não significa que ela seja a causa do problema, mas é preciso entender que ela está inserida num contexto de violência urbana, doméstica e exclusão social”, diz Lira, lembrando que mais da metade das vítimas de homicídio no país têm entre 15 e 29 anos.
Na região onde Marina mora, por exemplo, atuam tanto o tráfico como a milícia. Nos períodos em que os dois grupos estão em guerra, os alunos passam dias sem poder ir ao colégio. “Eu sinto cheiro de maconha dentro da minha própria casa, os caras ficam fumando bem em frente”, conta a jovem.
Um terço dos estudantes que responderam à pesquisa já teve aulas canceladas por tiroteios ou outros riscos externos. A mesma proporção também já foi alvo ou vivenciou efeitos da violência urbana, assim como já sofreu ameaças de abuso físico no colégio.
Já as brigas entre alunos são frequentes para 84% dos entrevistados. É o que Bernardo, 14, chama de “gritaria”: “Bate-boca durante a aula acontece quase diariamente”, diz ele, que também teve o nome preservado. O medo de se envolver e apanhar era frequente quando mais novo, na escola particular onde estudava.
“Me zoavam por causa do meu jeito, da minha voz, por sempre andar com meninas, e às vezes por eu tirar notas boas. Era ‘bichinha, menininha, baitola’. Eu fingia que estava ignorando, mas o psicológico ficava muito abalado.”
Ele chegou a passar seis meses inventando desculpas para faltar ao colégio. Se trancava no banheiro dizendo que estava com dor de barriga, esperando a van passar, até que um dia não aguentou mais e desabafou para os pais. “Eu era muito novo pra esse tipo de peso.”
Os impactos imediatos e futuros da violência na fase escolar podem ser múltiplos: dificuldade na aprendizagem e disciplina, problemas para estabelecer vínculos, lesões físicas, gravidez na adolescência, envolvimento com drogas, depressão, tentativa de suicídio e desistência de estudar.
A evasão escolar é o fator mais decisivo para levar jovens a cometerem crimes extremamente violentos —mais do que famílias desestruturadas—, concluiu um estudo de 2016 do sociólogo gaúcho Marcos Rolim. Todos os entrevistados que cumpriam pena tinham largado a escola aos 11 ou 12 anos.
Também causam consequências as violências vividas dentro de casa, onde 22% das crianças e adolescentes dizem não se sentir seguros. Seis em cada dez afirmam que apanham quando fazem algo de errado, mais de um terço costuma presenciar xingamentos e um quinto, agressões.
“Um dos grandes desafios é que a violência em casa é vista como problema privado. Quando uma mãe diz que bate porque ama, a criança internaliza isso, e é provável que faça o mesmo no futuro. É preciso romper esse ciclo e dizer que existem outras formas de educar, com respeito”, diz Karina Lira, da ONG Visão Mundial.
Para isso, ela defende a criação do que chama de “redes de proteção”, que envolvam escola, professor, família, comunidade e até outras esferas da sociedade, como postos de saúde, centros de assistência, delegacias, igrejas e associações de moradores.
Um exemplo foram as “comissões de proteção” implantadas em 36 escolas municipais de Fortaleza desde 2013, em um projeto da ONG em parceria com a prefeitura local. São grupos responsáveis por identificar situações de violência naquele espaço e pensar na prevenção e acolhimento das crianças.
“Testamos, sistematizamos e agora queremos tornar isso uma política pública, e não isolada”, afirma Lira. A organização também está voltando aos colégios que participaram da pesquisa recente para montar planos de assistência locais.
Foi uma cadeia desse tipo que fez com que o bullying a Bernardo finalmente cessasse. Sua mãe, quando ouviu as queixas e o choro do filho, foi conversar com a escola, que conversou com os alunos sem expor o menino. “Ainda bem que parou”, sussurra para si mesmo.
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