Larissa Mendes, 19
Aluna negra e da periferia supera preconceitos para estudar na Poli
RESUMO Em seu primeiro ano de engenharia civil na USP, Larissa Mendes, 19, ouviu de um colega: "Voc� n�o tem cara de quem estuda na Polit�cnica. N�o tem muitas meninas assim aqui". "Assim como?", retrucou ela, hoje no 3� per�odo do curso. N�o obteve resposta. Pesquisa Datafolha apontou que, por l�, 82% s�o homens e 59% pertencem � classe A. Mulher, negra, Larissa foi criada no Cap�o Redondo. Levantamento de aluna do Poligen (Grupo de Estudos de G�nero da Escola Polit�cnica) apontou que, durante 121 anos, s� sete mulheres negras se formaram na Poli.
Eduardo Anizelli - 24.nov.2016/Folhapress | ||
A estudante de engenharia da USP Larissa Mendes, 19 |
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Sempre gostei de exatas e decidi fazer engenharia na 5� s�rie [do ensino fundamental]. � comum ver menos mulheres que homens com afinidade para matem�tica, e as pessoas acabam achando que � algo natural. N�o �. � uma constru��o social.
Desde pequenos, os meninos t�m a criatividade e o racioc�nio l�gicos estimulados, brincam com carros, com blocos de constru��o.
J� os brinquedos femininos s�o ligados ao instinto materno e familiar: brincamos de boneca, de cozinhar.
No primeiro vestibular, rec�m-formada, acertei 45 quest�es -para passar em engenharia, tem que acertar 60. Na �poca, eu queria mesmo era passar no ITA. S� que minha prova nem chegou a ser corrigida, porque n�o atingi a pontua��o m�nima.
No come�o eu ainda pensava: vou fazer um ano de cursinho, vou estudar muito e vai dar tudo certo. Fiz a prova do cursinho e consegui bolsa de quase 100%.
Quando come�aram as aulas, foi um choque muito grande. O primeiro foi o social. As pessoas viviam em uma realidade muito diferente da minha. A maioria da turma dos cursos de exatas era homem. De 200 alunos, s� eu e um outro �ramos negros.
Naquele per�odo, n�o conseguia me relacionar. Uma vez uma menina olhou para mim e perguntou: "Voc� n�o tem medo que um bicho entre no seu cabelo?". Outra vez ouvi um menino dizer: "Toda vez que vejo esses pretos com dread [dreadlocks], tenho vontade de atropelar".
Se eu reclamasse, diziam que era mimimi, que eu estava fazendo drama. Eu me sentia sozinha e completamente isolada. Por causa do primeiro ano de cursinho, comecei a fazer terapia.
O segundo choque foi em rela��o ao ensino. Fui perceber o quanto a escola p�blica era insuficiente para a Fuvest s� depois de entrar no cursinho. Eu estava muito atr�s dos outros alunos.
Algumas mat�rias eu nunca tinha visto nem ouvido falar na minha vida. Pensei muito em desistir. A certa altura do primeiro ano de cursinho, percebi que o ITA n�o era uma op��o para mim. Mesmo para quem vem de escola particular, a prova n�o � f�cil. Para gente que veio de escola p�blica, ent�o, � um neg�cio de outro mundo.
Hoje vejo que a USP sempre foi a melhor alternativa. Se j� foi dif�cil lidar com as pessoas do cursinho, imagina como seria estudar numa faculdade elitista do Ex�rcito?
Mesmo com um ano de cursinho, n�o consegui entrar na engenharia. Me matriculei de novo, mas pagava o dobro, porque n�o tinha mais o desconto. Ainda assim era uma fra��o muito pequena da mensalidade real de l�, que, sem bolsa, � de mais de R$ 2.000. Eu pagava R$ 400.
Foi s� na terceira tentativa que passei -e muito bem. Precisava acertar 60, consegui 75. Com o b�nus da escola p�blica, minha nota passou de 80, mas eu teria entrado mesmo sem ele.
IGUAIS
As duas primeiras semanas na USP foram muito boas. � muito sensacional. Meus pais estavam muito felizes. Voc� acha tudo maravilhoso, a� come�am a vir as mat�rias.
O curso � de certa forma limitante. Ele n�o te ensina a raciocinar, a pensar, ele te ensina a fazer uma prova, uma quest�o espec�fica de uma mat�ria. Vai se dar bem quem teve acesso a um bom ensino m�dio. Nos col�gios tradicionais de S�o Paulo, � ensinado pr�-c�lculo no ensino m�dio, coisa que nunca estudei na vida.
A gente acha que a Fuvest iguala, que, a partir do momento em que voc� passa na prova, todas as pessoas que est�o aqui s�o iguais. N�o � isso que acontece.
Sinto muita dificuldade. Tive uma crise de ansiedade e n�o consegui fazer uma prova de mec�nica. Estava estudando ao longo do semestre inteiro, mas n�o conseguia entender a mat�ria. Fiquei mal, chorei muito. Como a gente � meio estimulado a competir, �s vezes fico com vergonha de pedir ajuda.
Acordo umas 5h40 para chegar �s 7h30. Tenho aula em per�odo integral. A volta demora e, quando chego em casa, n�o tenho disposi��o para estudar tanto. As pessoas falam como se fosse natural voc� virar v�rias noites, tomar n�o sei quantos copos de caf�, estudando.
Penso em desistir quase todo dia. O tempo todo h� muitas barreiras jogadas na nossa cara, dizendo "voc� n�o vai conseguir se formar".
�s vezes, no �nibus circular de manh�, as pessoas passam me empurrando para descer no ponto da Polit�cnica. Por qu�? Porque n�o acham que vou descer na Poli. Porque as �nicas pessoas negras aqui dentro s�o os funcion�rios terceirizados da faxina.
No meu ano, somos eu e mais dois meninos negros. Na engenharia inteira, conhe�o outros dois. N�o tem nem como voc� discutir a quest�o racial aqui dentro. Simplesmente n�o h� negros.
Os professores pedem entrevistas com engenheiros, visitas t�cnicas a obras, de um dia para o outro. S� consegue fazer quem tem um engenheiro pr�ximo. Quando questionei isso, uma colega de sala perguntou: "Mas voc� n�o tem nenhum engenheiro na sua fam�lia?"
As pessoas n�o t�m muita no��o do que acontece fora dessa bolha social da faculdade. Por isso que, mesmo com todos esses problemas, fico feliz em ter estudado na rede p�blica. N�o fui ensinada a fazer uma prova, mas a ser uma cidad� consciente e a entender a realidade do pr�ximo. Na minha escola tinha gente de diferentes classes sociais.
A sociedade � muito limitante. Desde pequeno, � como se nos ensinassem a pensar de um �nico jeito: ci�ncia exata n�o � para mim. Faculdade n�o � para mim. A USP n�o � para mim. � como se as pessoas n�o fossem estimuladas a sonhar.
Por isso a representatividade � t�o importante. Ver uma mulher negra que chegou at� l� faz a diferen�a na vida de outras pessoas.
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