O juiz Guilherme Eduardo Martins Kellner negou o pedido do Ministério Público para arquivar o inquérito que investiga um cabo da Polícia Militar suspeito de ser o autor do tiro com munição "bean bag" que matou o torcedor são-paulino Rafael dos Santos Tercílio Garcia, 32.
O pedido havia sido feito pelo promotor Rogério Leão Zagallo na quarta-feira (9). A decisão de Kellner foi publicada neste sexta-feira (11). O magistrado citou em sua decisão condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar de forma eficaz casos de mortes em ações policiais.
Zagallo tinha afirmado que o PM agiu em legítima defesa para conter um tumulto de torcedores, o que para o juiz não ficou claro.
Segundo Kellner, não está provado comportamento agressivo por parte da vítima, a qual ele chamou de inocente. "Não se justifica que, por medo, um agente da força atire 'à esmo' na multidão, como forma de amedrontar os demais e fazer cessar as possíveis futuras agressões".
"Entendo necessário que os fatos sejam melhores apurados, para a verificação de que o comportamento do investigado tenha se dado efetivamente em legítima defesa e não em dolo ou culpa com excesso de força policial", escreveu Kellner em sua decisão.
O juiz determinou o envio do processo à instância superior do Ministério Público para reanálise do pedido de arquivamento.
Garcia, que trabalhava como empacotador e era surdo, foi atingido na parte de trás da cabeça, conforme o laudo da perícia. O caso ocorreu em 24 de setembro do ano passado. Ele tinha saído de casa para assistir a final da Copa do Brasil entre São Paulo e Flamengo e foi baleado durante uma confusão que se formou na comemoração dos torcedores pelo título.
A investigação da Polícia Civil levou cerca de um ano para ser remetida à promotoria. O DHPP (Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa) entendeu se tratar de um caso de homicídio culposo, ou seja, sem intenção. Entendimento semelhante ao da apuração tocada pela Polícia Militar que foi concluída ao final de 2023.
O advogado do PM Wesley de Carvalho Dias, João Carlos Campanini, discordou do entendimento dos responsáveis pela apuração. Em fevereiro ele disse para a Folha que "o homicídio culposo é configurado por atos de negligência, imprudência ou imperícia no uso do armamento ou no procedimento policial, atos que em momento algum o cabo Wesley cometeu."
Para Zagallo, a ação penal contra o cabo seria uma medida injusta.
"Diante da prova aqui produzida, não vislumbro, nem mesmo culposamente, qualquer responsabilidade penal a ser atribuída ao policial supramencionado", diz um trecho do documento.
"O caso deve ser criminalmente arquivado, sem prejuízo de eventual indenização civil que possa buscar a família da vítima", acrescentou o promotor.
Zagallo, no entanto, disse reconhecer e ser legítima a discussão se a PM deve ou não utilizar a munição bean bag para debelar distúrbios civis, mas que deve ocorrer em outro campo que não no inquérito policial em questão.
Para o promotor, a culpa pela confusão foi única e exclusiva de um grupo de torcedores, com a PM trabalhando para conter o tumulto. "O início do confronto entre torcedores e policiais, portanto, é tributável unicamente ao comportamento hostil e agressivo daqueles primeiros. Se eles tivessem respeitado as regras de conduta impostas desde o início dos trabalhos não teria ocorrido o embate".
No processo, Zagallo fez menção a um outro inquérito no qual atuou no âmbito esportivo. O da morte da torcedora do Palmeiras Gabriella Anelli Marchiano, ocorrida no dia 8 de julho de 2023, após um torcedor do Flamengo atirar uma garrafa de vidro na direção em que ela estava. Nesse caso, Zagallo pediu a prisão preventiva do suspeito, que segue detido até hoje.
Entre as orientações que constam em um manual da PM sobre o uso de "bean bag" é que se deve evitar tiros na cabeça. Os disparos também devem ocorrer em uma distância mínima a partir de seis metros.
Laudo 3D produzido pelo Instituto de Criminalística estimou que que o disparo que matou Garcia ocorreu a uma distância de 8,27 metros de onde a vítima teria caído.
O documento, porém, deixa claro não ser possível mensurar a distância exata. Em seu relatório final o delegado responsável pela investigação, Eduardo Angelo disse acreditar que o tiro tenha sido a uma distância inferior ao apontado no laudo devido a própria dinâmica do evento.
Para o advogado Tiago Ziurkelis, defensor da família de Garcia, o PM deve ser julgado por homicídio com dolo eventual.
"Ao ignorar essa orientação e disparar na região craniana, o agente policial demonstrou um desprezo pela segurança da vítima e pelo próprio protocolo de uso de força não letal. Essa atitude é indicativa de dolo eventual, pois não só previu o risco de causar a morte de Rafael, como prosseguiu na ação, mesmo ciente da possibilidade de um desfecho fatal".
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