Ilha das Flores, cenário de curta emblemático de Jorge Furtado, segue sob lixo

Após 35 anos, moradores ainda tiram sustento de resíduos e criam porcos às escondidas; chuvas causaram perdas para catadores

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Foto aérea mostra homem em meio a entulho de lixo, móveis quebrados e objetos descartados; um cachorro se aproxima

Morador da ilha das Flores, em Porto Alegre, mexe no entulho de lixo e resto de móveis e pertences retirados das casas depois da enxurrada - Carlos Macedo / Folhapress

Porto Alegre

Trinta e cinco anos depois do documentário "Ilha das Flores", que já foi eleito o melhor curta-metragem brasileiro da história, a realidade da região mudou bastante, mas não se pode dizer que foi para melhor.

Nas cheias que assolaram Porto Alegre no início do mês passado, os moradores da ilha das Flores, assim como os das vizinhas ilha dos Marinheiros e ilha Pintada, estiveram entre os mais afetados, com a água chegando a esconder o teto de casas —várias feitas apenas com madeira.

Muitos estão em abrigos e outros estão acampados à beira da BR-290/BR-116 (por cima do Guaíba, essas rodovias se unem, para voltarem a se dividir alguns quilômetros depois), recebendo água e cobertores da Marinha ou doações de alimentos das igrejas locais.

Casas inteiras estão no chão e centenas de animais morreram afogados ou atropelados por caminhões na primeira noite da inundação. "Há muitos anos estamos esquecidos pelos órgãos públicos", afirma Elisandra Silva, voluntária da Associação dos Moradores da Ilha das Flores, enquanto anotava o nome das mulheres que iam ao local buscar fraldas doadas.

Ela conhece o filme de Jorge Furtado, de 1989. "Porcos e lixo, né?" Isso mesmo. Assim como no documentário, o lixo continua sendo fonte de sustento de parte da população ali.

Na época do filme, cujo gatilho foi o início da coleta seletiva na capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre utilizava as ilhas como depósito de resíduos. "Ilha das Flores" é um documentário por fazer uma denúncia real a respeito de pessoas que viviam de catar comida no lixo apenas depois que os porcos haviam sido alimentados com os resíduos.

O roteiro trata de um tomate que, após plantado, colhido e vendido para uma dona de casa, é jogado no lixo por estar podre. O tomate acaba no lixão, onde, após ser recusado pelos porcos, é recolhido por seres humanos.

Apesar de ser documentário, a maior parte de suas imagens é ficcionalizada e, apesar da gravidade do tema, o texto é repleto de humor. As gravações nem sequer aconteceram na ilha das Flores, mas na vizinha Marinheiro, conforme revelam os créditos ao final dos 13 minutos do curta.

De lá para cá, os lixões do Arquipélago foram desativados. Mas Luiz Carlos Vasconcellos de Araújo, que nasceu lá mesmo há 61 anos, e sua mulher Teresa Silva de Araújo são exemplos de que, no fundo, a miséria permanece.

Eles vivem do lixo que recolhem pela ilha, não mais resíduos orgânicos, e sim material reciclado. No dia da cheia, eles tinham 40 sacolões, ou "bags", como chamam, prontos para vender ao caminhão.

"Foi uma tristeza, pois para reunir 40 bags é preciso mais do que 30 dias catando", diz Teresa. "Espalhou tudo de novo, perdemos o trabalho de um mês", lamenta o seu Carlinhos.

O casal Luiz Carlos Vasconcellos de Araújo e Teresa Silva de Araújo mostra as bags cheias de reciclagem que seriam vendidas quando as correntezas destruíram sua casa e galpão - Carlos Macedo/Folhapress

Uma bag é quase como um cubo de 1,5 metro de lado. Lotado com entulho, só uma máquina levanta. Com garrafas PET verdes, não chega a 13 quilos. Carlinhos e mulher vendem o material já dividido: PET verde, branco (transparente) e leitoso (branco), tetrapak, caixas de TV, latinhas, tubos de PVC.

Se tivesse vendido os 40 sacolões no início de maio, a família teria faturado uns R$ 400, eles dizem. É tudo o que conseguirão por meio do trabalho em um mês. Cerca de R$ 600 vêm do Bolsa Família, mas, segundo Teresa, quase todo esse auxílio vai para a agenda escolar do filho mais novo: uniformes (todos levados pela enchente), cadernos (idem) e as passagens de ônibus para ida e volta.

Daí tem que sair o sustento para o casal, outros filhos (seis no total) e netos (três até agora). É preciso ainda pagar os R$ 130 do botijão de gás, que jamais dura um mês. Eles têm uma vaca leiteira, duas novilhas e uma galinha, que dá ovo dia sim, dia não, além de cavalos para puxar pela ilha o carrinho de lixo reciclado.

O casal completa a mesa pescando no Guaíba. Atualmente, conta Teresa, tem dado muito biru, que é um peixe "pequeninho assim", mostra ela, com as duas mãos. "O biru dá muito em enchente. Entram até nas casas."

A voluntária Elisandra Silva (à esq.) anota doações na frente da sede da Associação dos Moradores da Iha das Flores - Carlos Macedo/Folhapress

Plantar ali não dá certo, diz o Carlinhos. "A gente está nesse terreno perto do antigo posto Teixeirinha. Há uns cinco anos, a Ambiental [Secretaria do Meio Ambiente] veio aqui e viu estava derramando óleo no solo. A Ambiental não aceitou e mandou desmanchar o posto. A banana pega, mas não vinga."

"A gente vinha de criar porcos", conta Carlinhos. "Mas aí veio uma lei proibindo, há muitos anos, e tivemos que acabar." Se em 1989 porcos eram criados comendo lixo e, depois, essa carne era vendida, a Vigilância Sanitária já não permite que isso aconteça nos quintais de Porto Alegre.

Mas há quem tenha os seus suínos, sim. A reportagem acompanhou a chegada de dois deles, um de 300 quilos e outro com a metade, para um chiqueiro na ilha. Os donos contam que os animais são "carne de primeira, só alimentados com farelo de arroz, pão e milho quebrado —nada de lixo". Ele também garante que são vacinados anualmente.

Outro rapaz mostra dois porquinhos de um mês de idade. Segundo ele, seu tio tinha 52 porcos até a cheia, quando metade morreu afogada e a outra, atropelada pelos caminhões que cruzavam a BR. "A gente corria atrás dos bichos, tentando juntar eles no barranco, mas não teve jeito", lamenta, enquanto segura os dois únicos remanescentes.

Quem era o dono da porcada era o seu Manoel, rememora o Carlinhos. Isso foi quando Carlinhos era criança na ilha das Flores, nos anos 1960 e 1970. Em suas recordações pessoais, ele não se lembra de ter que esperar os porcos se alimentarem para entrar depois no lixão. Mas do lixão ele se recorda bem.

"Vinha caminhão de supermercado e diziam ‘olha, isso aqui ainda está bom’ ou ‘acabou de vencer’. Lembro de montanhas de bala e chiclete que eles traziam aqui. E os queijos, então? Despejavam toneladas de queijo", conta, com sincero saudosismo no olhar.

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