Empresas acusam Prefeitura de SP de barrar concorrência por contrato de quase R$ 1 bilhão

Auditores do TCM concluíram que licitação não tinha condições de ser feita; OUTRO LADO: processo seguiu todos os trâmites legais, diz SPTrans

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São Paulo

Duas empresas multinacionais acusam a SPTrans, empresa que administra as linhas de ônibus da cidade de São Paulo, de impedi-las de concorrer em uma licitação que vai pagar R$ 908 milhões por um sistema de geolocalização dos veículos e gestão digital das viagens.

A companhia israelense Optibus e a canadense Volaris, representadas pelo mesmo escritório de advocacia, afirmam que foram barradas porque não conseguiram obter um documento emitido pela própria SPTrans, e não puderam oferecer seus produtos à administração municipal.

O documento —um termo de homologação, atestando que a empresa candidata tem qualificações mínimas e está apta a concorrer— foi emitido para apenas duas empresas. No dia da licitação, apenas uma delas apresentou proposta.

Questionada, a SPTrans afirmou que seguiu "todos os trâmites legais previstos e com total transparência" no processo. A empresa municipal destacou que "as contestações apresentadas até o momento foram recusadas pela Justiça e o processo licitatório segue liberado" pelo TCM (Tribunal de Contas do Município), órgão responsável pela fiscalização dos gastos públicos.

Movimentação de passageiros no terminal de ônibus Tatuapé, na zona leste de SP; multinacionais dizem que prefeitura barrou concorrência para fornecer sistema de geolocalização - Zanone Fraissat - 17.dez.2023/Folhapress

A licitação escolheu a empresa que vai fornecer o chamado SMGO (Sistema de Monitoramento e Gestão Operacional). Previsto para ser implementado no transporte público da cidade desde 2015, esse sistema vai permitir saber em tempo real onde estão os veículos, além de instalar câmeras de segurança nos ônibus, emitir alertas, permitir comunicação com motoristas e cobradores, e gerenciar as viagens dos serviços Atende+ (que transporta passageiros com deficiência) e das vans escolares.

O TCM identificou problemas graves na licitação, a ponto de recomendar que ela não prosseguisse. Um relatório do tribunal apontou 16 irregularidades no edital e concluiu que não havia condições de prosseguimento.

Auditores do tribunal consideraram que houve irregularidade na pesquisa de preços, uma vez que a consulta só foi feita com as duas empresas homologadas. A equipe de auditoria também afirma que a prefeitura não apresentou justificativa válida para o modelo escolhido para a licitação —uma concorrência fechada, apenas para empresas autorizadas.

"A obtenção de uma cotação de mercado considerando somente dois fornecedores pode levar a uma distorção significativa", diz o relatório do tribunal. O documento é assinado por quatro auditores, pelo supervisor e pelo coordenador de controle externo da Corte.

A SPTrans seguiu com a licitação mesmo com as irregularidades apontadas pelo corpo técnico do tribunal. O conselheiro Ricardo Torres, o único indicado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), tinha a possibilidade de determinar a suspensão da concorrência para que a empresa se adequasse aos apontamentos do TCM, mas optou por fazer apenas uma recomendação nesse sentido.

No entanto, após ajustes pontuais no edital, a administração municipal ignorou a recomendação para suspender o certame. A licitação foi realizada no dia 11 de abril, e a empresa americana Clever Devices propôs que a prefeitura pagasse cerca de R$ 40 milhões a mais do que o previsto em edital. No entanto, acabou contratada pelo valor original, de R$ 908 milhões.

A controvérsia entre as empresas e a SPTrans gira em torno do método pelo qual as candidatas foram desclassificadas. O advogado Guillermo Glassman, representante de Optibus e Volaris, afirma que não ocorreu um processo de homologação, e sim "uma reanálise técnica às pressas" e que esse processo "não seguiu nenhum critério pré-definido" em edital.

Segundo o advogado, uma série de testes exigidos pela prefeitura já haviam sido feitos por uma empresa certificadora, aTüv Rheinland, e a SPTrans deveria se restringir a confirmar que os documentos apresentados eram válidos.

"Eles chamaram empresa por empresa, entre quatro paredes, e disseram: 'apresenta aqui o seu sistema'. Fizeram uma avaliação do que acharam bom e do que acharam ruim e afastaram quase todas as empresas desse mercado", afirmou Glassman à Folha. "Esse afastamento ocorreu de forma bastante subjetiva, as empresas não conseguiram ter acesso às informações umas das outras, para verificar se foram julgadas corretamente."

Em resposta, a companhia municipal dos ônibus diz que as duas empresas apresentaram um produto para a gestão de transporte público de forma conjunta. O sistema das empresas chegou a ser certificado —ou seja, o aval de que o produto atendia às condições mínimas exigidas pela prefeitura.

A SPTrans afirmou, porém, que o sistema das empresas não tinha funcionalidades básicas, e que a certificação foi emitida de forma indevida. "Aquelas [empresas] que afirmam interesse, pretendem apenas vender uma solução que não se adequa à necessidade da Administração", afirmou a empresa municipal num processo do TCM.

Já os auditores do tribunal apontam problemas de outra natureza, especialmente nos critérios de pagamentos ao prestador de serviço pelos cofres públicos. Em relatório, eles afirmaram que "a obtenção de uma cotação de mercado considerando somente 2 fornecedores pode levar a uma distorção significativa".

Segundo os auditores, a SPTrans também não conseguiu demonstrar que a forma de pagamento por serviços previstos no contrato seria economicamente vantajosa aos cofres públicos. A gestão municipal "não esclarece potenciais prejuízos ao erário decorrentes de pagamentos por serviços não prestados ou excedentes de preços decorrentes dessa indefinição", diz o documento.

A auditoria do TCM também considera que todo o dinheiro investido no sistema não garante que a tecnologia seja transferida ao município. A transferência de tecnologia faz parte das regras da concessão das linhas de ônibus da capital, que já previa a instalação do sistema em 2015.

O tribunal entrou em contato com as duas fornecedoras que conseguiram a homologação da SPTrans para participar da licitação, e ambas afirmaram que não havia garantias de que o sistema continuaria funcionando se o contrato de prestação de serviço for encerrado —ao contrário do que estava previsto.

"Há considerável disparidade entre o que a SPTrans afirma sobre as características da contratação e quais serão as consequências práticas da modelagem por licenciamento adotada na contratação", dizem os auditores.

A defesa da Optibus e da Volaris entrou com um mandado de segurança para suspender a licitação no Tribunal de Justiça de São Paulo, mas a ação foi recusada pelo juiz, que considerou que mais provas seriam necessárias para isso —esse tipo de ação judicial não permite colheita de testemunhos e perícia, o que prejudica a geração de provas. O juízo não analisou o mérito do pedido, e as empresas pretendem concorrer. Uma denúncia também foi encaminhada ao Ministério Público.

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