Descrição de chapéu
Chuvas no Sul mudança climática

Como Porto Alegre ficou debaixo d'água

É preciso reavaliar o sistema contra inundação existente na capital gaúcha e reforçá-lo em múltiplas escalas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Anthony Ling

Urbanista e editor do Caos Planejado, plataforma digital sobre cidades

Roberta Inglês

Urbanista, é editora de urbanismo do Caos Planejado, plataforma digital sobre cidades

Porto Alegre

Quem não mantém laços com o Rio Grande do Sul talvez nunca entenda a magnitude do impacto do desastre climático em curso. Até 27 de maio, devido às enchentes que assolam o estado, havia 169 mortes confirmadas, 581 mil pessoas desalojadas —equivalente à população de Florianópolis— e a cheia havia atingido mais da metade dos bairros de Porto Alegre. O estado levará décadas para se reerguer da catástrofe ambiental de maior impacto físico e econômico que o país já sofreu. Como isso pôde acontecer?

Porto Alegre possui uma topografia de morros que rodeiam áreas planas junto ao lago Guaíba, muitas abaixo da cota de 3 m acima do nível do mar, considerada a "cota de inundação" do cais Mauá, no centro histórico da cidade. Cinco rios do interior do estado deságuam no Guaíba, que banha a capital e boa parte da sua região metropolitana.

A água do Guaíba segue para a lagoa dos Patos, único caminho para chegar ao mar. Porém, esse escoamento é difícil, pois a abertura no porto de Rio Grande é estreita, criando uma espécie de funil. Além disso, ao longo dos anos, Porto Alegre avançou sobre o Guaíba com a construção de aterros em níveis também suscetíveis a alagamentos. Há também o aumento da urbanização às margens dos rios, que tende a provocar a impermeabilização do solo e, consequentemente, o escoamento superficial das águas.

Morador usa uma carcaça de refrigerador para passar pela enchente em Porto Alegre
Homem atravesse enchente em Porto Alegre; capital gaúcha tem vários bairros embaixo d'água há quase um mês - Anselmo Cunha - 27.mai.2024/AFP

Em 1941, houve a maior enchente na história de Porto Alegre até então. Na ocasião, o nível do Guaíba chegou a 4,75 m, 1,75 m acima da cota de inundação, e 70 mil pessoas ficaram desabrigadas. Na década de 1970 foi construído um sistema de proteção que consistia em diques, comportas, casas de bombas e uma cortina de concreto que hoje conhecemos como muro da Mauá, barreira que atinge 6 m acima do nível do mar, ou 3 m acima da cota de inundação.

O muro deu continuidade aos diques na altura do centro histórico, devido à falta de espaço na área já urbanizada, que contemplava um porto ainda ativo. Por separar a cidade do Guaíba e, também, dos galpões do cais Mauá, hoje patrimônio histórico, o muro acelerou a fuga de investimentos do centro e se tornou alvo de polêmicas.

Entre as alternativas da época, o sistema foi escolhido pelo custo de implantação, pela efetividade e relativa simplicidade na operação. Ele foi financiado por um convênio entre o extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), que arcou com metade do custo da obra, o governo do estado e o município de Porto Alegre.

Nos 50 anos desde sua construção, o sistema nunca havia sido estressado. A princípio, não surpreende: em 2018, especialistas do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) da UFRGS haviam modelado que o risco de uma enchente como a de 1941 se repetir era de 1 vez a cada 1.500 anos.

No entanto, essas modelagens são muito sensíveis a novas ocorrências, que tendem a aumentar com mudanças climáticas. Nos últimos meses, devido às fortes chuvas no estado, os procedimentos de fechamento das comportas tiveram de ser acionados pela primeira vez.

Os mais afetados foram os moradores da região das ilhas, a oeste do Guaíba, que não possui sistema de proteção contra enchentes e está em uma cota de inundação mais baixa. Em setembro de 2023, o Guaíba atingiu 3,18 m e houve vazamento de água por uma das comportas do muro da Mauá, um sinal de alerta para a catástrofe que viria a seguir.

Em abril de 2024, fortes chuvas castigaram o interior do Rio Grande do Sul, agravadas pelo fenômeno El Niño. O nível do oceano Atlântico também estava acima do normal devido às chamadas "marés de tempestade", dificultando o escoamento da água.

Em 29 de abril, a Prefeitura de Porto Alegre alertou moradores de "áreas de riscos hidrológicos", sem especificar as localidades. Em 1º de maio, já se reportava enchente histórica no vale do Taquari, no interior do estado, e um alerta foi emitido para moradores da região das ilhas. A água estava descendo dos rios do interior em direção ao Guaíba.

No dia seguinte, os moradores das ilhas estavam desabrigados. O IPH divulgou previsão para o aumento histórico do Guaíba, ultrapassando 5 m, e a prefeitura emitiu outro alerta para moradores do centro e do 4º Distrito. No entanto, com maior exceção às ilhas, Porto Alegre parecia seguir alheia a esse quadro grave. Somente no dia seguinte, quando a água do Guaíba vazou pelas comportas e se excedeu a capacidade da casa de bombas da avenida Mauá, que começou a verter água, iniciou-se um processo de evacuação do centro histórico.

Foram poucas horas para moradores e comerciantes planejarem a saída de suas residências e lojas, e a sequência aterrorizante de eventos pegou outros pontos da cidade de surpresa.

A comporta próxima à avenida Sertório se rompeu, e a água invadiu a zona norte da cidade. O dique do Sarandi, de altura inferior a 6 m, transbordou. A água também começou a extravasar por bueiros e bocas de lobo. Nas horas seguintes, bairros inteiros já estavam cobertos com água a mais de 1 m do nível da rua. No final do dia, o aeroporto Salgado Filho fechou por tempo indeterminado, e as principais rotas rodoviárias de acesso da cidade estavam alagadas.

O Guaíba seguiu subindo, instalando caos na cidade. Ele atingiu o recorde de 5,35 m (altura ainda questionada) no dia 5 de maio, inundando a cidade como se não houvesse qualquer sistema de contenção.

A água invadiu, inclusive, as estações de bombas que ajudariam na sua eliminação, chegando a inviabilizar 19 das 23 existentes. As bombas não haviam sido instaladas acima da cota de inundação, na perspectiva otimista de que o sistema garantiria que a água não entrasse na cidade.

A maioria das estações de tratamento de água também foi afetada, deixando 70% da população sem abastecimento. Em meio a um rápido aumento do número de pessoas em abrigos emergenciais, houve uma corrida por água engarrafada, que também acabou.

Nos dias seguintes, a região metropolitana da capital gaúcha se viu em estado de guerra, com centenas de lanchas, botes, jet skis e caiaques, em sua maioria pilotados por civis, realizando resgates e transportando insumos e equipamentos pelas ruas, agora tomadas por água. Ações coordenadas emergencialmente entre prefeitura, instituições privadas e sociedade civil atenderam centenas de abrigos que se formavam, enquanto equipes tentavam religar as bombas que haviam sido inundadas.

Foram muitos os motivos que levaram os moradores a não saírem de suas casas em meio às enchentes: a falta de aviso, a crença de que a água não chegaria a suas casas, condições particulares (como idade ou limitações físicas, bichos de estimação, receio de saques em meio ao caos instalado) e, por fim, o próprio medo de ir a um abrigo.

Segundo dados do IBGE de 2010, 6,2% da população da região metropolitana de Porto Alegre vive em favelas, estando mais suscetível a eventos climáticos extremos por ter condições habitacionais e urbanas com risco ambiental elevado. As áreas mais afetadas pelas enchentes são bairros de baixa renda, domicílios que não tiveram como proteger os seus bens em meio a uma situação catastrófica sem alerta prévio. Esses moradores tampouco tinham recursos para se abrigar em outra localidade.

Não é fácil escrever sobre o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Continua chovendo, e bairros inteiros seguem debaixo d’água. As imagens e os relatos de sofrimento vão ficar na nossa memória durante um longo processo de reconstrução que está por vir.

Para tal, é preciso uma reflexão profunda sobre a resiliência a desastres climáticos em um cenário em que cientistas alertam para o agravamento desse tipo de fenômeno. Cidades do interior do estado foram devastadas; avalia-se a realocação de bairros inteiros. Sistemas de proteção similares nas vizinhas Canoas e São Leopoldo também falharam, com consequências severas de inundações.

É preciso reavaliar o sistema existente e reforçá-lo em múltiplas escalas, com medidas de mitigação em nível regional, com qualidade habitacional e de urbanização para o aumento da resiliência climática, principalmente em áreas de baixa renda, assim como a implantação de sistemas de monitoramento, alerta e protocolos de resposta mais efetivos. Só assim voltaremos mais fortes.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.