Um terreno de 793 metros quadrados em Interlagos, na zona sul de São Paulo, está no centro de uma disputa entre um ex-juiz —que diz ser o dono do local— e a prefeitura, que afirma que a área é pública.
Batizada pela gestão municipal como praça Ramiro Cabral da Silva, o terreno foi colocado à venda por quase R$ 1,3 milhão a pedido do ex-magistrado Wanderley Sebastião Fernandes graças a uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O local está cercado com alambrado, portão, correntes e cadeados desde o dia 23 de março. Placas foram fixadas em algumas de suas árvores com o aviso de que o terreno é particular e informam o número de uma ação judicial.
A praça está no centro de uma batalha entre Fernandes e a prefeitura que perdura há quase 20 anos.
O cerco à praça surpreendeu parte dos moradores —que chegaram a derrubar o alambrado. Fernandes, porém, mandou refazer a cerca.
O grupo que defende que a área é pública cita um decreto municipal, assinado pelo então prefeito Gilberto Kassab (PSD), em 2009, que nomeia o espaço como praça Ramiro Cabral da Silva.
Acontece que três anos antes, em 2006, Fernandes havia acionado o município na Justiça com uma ação de indenização por apossamento administrativo —quando o poder público se apossa de um bem particular sem acordo ou decisão judicial.
Em sua petição, Fernandes apresentou cópias de cobrança do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), entre outros documentos. Já a Procuradoria-Geral do Município (PGM) questiona o fato de Fernandes adquirir o terreno em 2002, quando o local já funcionava como praça.
"Se o próprio autor [Fernandes] alega que a ocupação administrativa teria ocorrido em 1994, é forçoso reconhecer que o negócio jurídico que lhe transmitiu a alegada propriedade seria nulo", afirma o procurador.
A 6ª Câmara de Direito Público do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo) entendeu, em fevereiro de 2016, que não houve apossamento por parte da prefeitura e "portanto remanesce o lote 03 em propriedade dos autores [Fernandes] que dele podem utilizar em sua plenitude, sem qualquer oposição por parte do município".
Apesar de a decisão ter sido publicada em 2016, o ex-juiz diz que cercou a praça agora porque reside na Europa e somente neste ano veio ao Brasil.
O terreno em formato de triângulo, às margens da movimentada avenida Antônio Barbosa da Silva Sandoval, conta com área verde e bancos de alvenaria. O espaço é apresentado como praça no GeoSampa, o mapa digital oficial da capital, publicado pela prefeitura.
Se transformado em área particular, o terreno poderá obter maior valorização caso seja demarcado como ZEUa (Zona Eixo de Estruturação da Transformação Urbana Ambiental) pela Lei de Zoneamento.
Comparado ao entorno, esse zoneamento, válido apenas à direita da praça, tem mais incentivos para a construção de prédios. É uma regra do Plano Diretor para estimular a construção de moradias perto de corredores de ônibus ou do transporte sobre trilhos.
A ZEUa permite edifícios com até 28 metros de altura –cerca de nove andares– e com área construída vertical duas vezes maior do que o lote, em metros quadrados. Esse potencial construtivo pode subir se outros parâmetros forem atendidos, como a reserva de alguns apartamentos para famílias com renda de até dez salários mínimos.
A praça em disputa também está de frente para uma ZER, a zona de uso exclusivamente residencial, onde o gabarito (altura) é limitado a dez metros. Um edifício diante dessa área, portanto, poderia ser oferecido com a vantagem de possuir janelas e varandas que não terão a vista obstruída por outros espigões.
O valor da terra será menor, no entanto, se ela for demarcada como ZMa (Zona Mista Ambiental), como são as quadras à esquerda da praça. A decisão deverá ser da Câmara Técnica de Legislação Urbanística.
Em nota enviada à Folha, a gestão Ricardo Nunes (MDB) disse que defende a área como pública e solicitou uma medida de emergência.
Já Fernandes escreveu à reportagem pelo WhatsApp que, desde 2003, briga para manter a posse do terreno. "Depois de vinte e um anos de espera, fundamentado em decisões judiciais, resolvi cercar o terreno que me pertence há décadas", escreveu.
Ele deixou a magistratura em 2013, ao ser aposentado de forma compulsória.
Enquanto era juiz, Fernandes teria arrematado, em 2008 e 2009, 20 imóveis em leilões judiciais. Como a Folha mostrou, na época, a acusação é de que ele os arrematava para revender, o que foi entendido como atividade empresarial.
Questionado sobre isso, ele classificou a pergunta como "sensacionalismo barato".
Após cercar o espaço, o ex-juiz foi até a praça acompanhado de um corretor para fixar placas de Vende-se. No entanto, a imobiliária abortou o negócio depois da reclamação da vizinhança.
A corretora não quis conceder entrevistas.
Vizinhos do terreno há quase 40 anos, Celso Paulon e Pedro Marcos Borati afirmam que desde quando se mudaram para o bairro já havia uma praça instalada no local.
"Hoje é tão difícil ter árvores, tudo está virando cimento. Ele invadiu e vai querer construir alguma coisa aí", afirma Paulon, diante do alambrado.
Um abaixo-assinado feito pelos moradores e publicado na internet no dia 25 de março colheu 880 assinaturas.
Políticos do PSOL acionaram o Ministério Público e o TCM (Tribunal de Contas do Município) para que investigue possíveis improbidade administrativa na prefeitura pelo caso.
"O que mais chama a atenção nesse caso é que, de um dia para o outro, a praça foi completamente cercada, sem qualquer ação fiscalizadora do poder público e que fica a poucas quadras da residência particular do prefeito Ricardo Nunes", disse o deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL).
A reportagem perguntou à Secretaria de Comunicação se a praça está a menos de dois quilômetros da casa do prefeito e se houve fiscalização por parte da Subprefeitura da Capela do Socorro, responsável pela região, mas nenhuma delas foi respondida.
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