Era véspera do julgamento no qual o Estado brasileiro admitiu pela primeira vez em público que, sim, violou os direitos dos povos quilombolas de Alcântara (MA). O nervosismo de Inaldo Faustino Silva Diniz ia aumentando gradativamente.
"Estava temeroso, pensando em qual seria o resultado, quase não acreditando", diz o maranhense, de 63 anos, à Folha. "Pedi ajuda aos meus orixás. ‘Estou numa situação meio complicada. O que vocês podem fazer por mim amanhã à tarde?’", relata.
O apelo ao sagrado funcionou, segundo Inaldo. Mesmo nervoso, o quilombola cumpriu a tarefa que o levara até o Chile —mais especificamente à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em Santiago, em abril deste ano—, e depôs contra o Estado brasileiro.
Inaldo falou como testemunha da violação de direitos das comunidades de Alcântara. "Se eu não estivesse na Corte, mas num debate qualquer, teria sido preso. Ouvir o Estado querendo justificar o injustificável fez algo subir em mim."
Com mais de 40 anos de conflito, a base aeroespacial de Alcântara é um dos casos mais emblemáticos envolvendo comunidades quilombolas do país. Até então, nenhum outro tinha chegado à Corte, órgão vinculado à OEA (Organização dos Estados Americanos).
De acordo com dados da organização Justiça Global, 312 famílias quilombolas, de 32 povos, foram reassentadas de forma compulsória entre os anos de 1986 a 1988, para a instalação da base.
Realizado nos dias 26 e 27 de abril, o julgamento ouviu peritos, comissionados, testemunhas, porta-vozes do Estado e organizações envolvidas.
No banco dos réus, o Brasil, representado pela AGU (Advocacia-Geral da União), prometeu "buscar soluções para a titulação" das comunidades, regulamentar o protocolo da consulta prévia em remanejos territoriais e implementar políticas públicas que beneficiem diretamente os quilombolas.
Oito meses após o julgamento, Inaldo afirma estar otimista, mas somente até certo ponto. O pé atrás com as promessas vem justamente de tantas outras que lhe foram feitas ao longo de décadas.
"Em Alcântara, as coisas começam, mas nunca terminam. Tenho um pouco de pessimismo em relação ao que foi dito e está sendo planejado", diz. "Independentemente de gestão de governo, é um jogo de interesses. Quem sempre paga o pato são os pretos, índios, ribeirinhos e pobres. Os que estão à margem."
Ele diz se lembrar da primeira vez em que teve contato com o tema. Foi em 1977, aos 17 anos. "Ouvi meu pai conversando com alguém, que perguntou se ele já sabia da desapropriação de terras que ia ter em Alcântara."
Três anos depois, o tema deixou o status de boato e se tornou decreto estadual, que previa a expropriação de 52 mil hectares do município para a construção do CLA (Centro de Lançamento de Alcântara).
Na época, o principal argumento usado por oficiais da Força Aérea era o de que investir na tecnologia espacial traria uma série de benefícios à nação. A escolha por Alcântara se deu por sua posição no globo terrestre —perto da linha do Equador, a cidade é boa para o lançamento de foguetes. Nenhuma das comunidades remanejadas para a instalação da base, no entanto, foi previamente consultada.
Em 1983 foi a vez de um decreto federal, juntamente às primeiras promessas oficiais. O então Ministério da Aeronáutica se comprometeu a entregar terras com condições semelhantes àquelas em que viviam os quilombolas.
Os moradores imaginaram, então, que seus novos terrenos seriam próximos do mar e adequados para agricultura. Também ouviram do governo que teriam em breve o título definitivo das propriedades. Não foi o que aconteceu.
Além disso, apesar das diferenças culturais e históricas entre as dezenas de comunidades envolvidas, o remanejo ignorou suas particularidades e agrupou os povoados em sete agrovilas: Espera, Ponta Seca, Só Assim, Cajueiro, Pepital, Peru e Marudá.
"O Estado tem aqui um papel de dividir as famílias", afirma Inaldo, morador da agrovila Espera. "Esta comunidade está dispersa. É muito triste", completa, com a voz embargada e lágrimas sobre o rosto. "Muitos não têm lote e vivem de Bolsa Família."
Construídas pela Aeronáutica, as agrovilas ficam em áreas bem distantes das de origem dos quilombolas. Se antes era simples caminhar até o mar para pescar, agora já não é. A rotina da agricultura também foi afetada. "As agrovilas têm ‘agro’ no nome, mas não produzem e vendem nada", diz o maranhense.
Ele classifica as tentativas de implementação de hortas como uma política desastrosa. "Que substância tem? Aqui tem farinha, mas e o resto do que perdemos? Nem mesmo o arroz, que é paliativo da farinha, plantamos mais. Não é que não tem terra, é que as terras são de péssima qualidade."
Para plantar, ele e alguns quilombolas recorrem a terras em arrendamento, localizadas numa estrada próxima às agrovilas. O preço varia. A área dele, por exemplo, custa R$ 400 anuais.
Inaldo diz acreditar que tudo foi, desde o princípio, estrategicamente planejado para enganá-los. Isso porque boa parte das remoções foi executada por jovens quilombolas que, anos antes, tinham sido convidados a trabalharem na montagem da base.
"Só depois que a gente foi entender. Era uma forma de se aproximar do povo e não nos deixar assustados."
Militantes como ele e Sérvulo Borges, que estava entre os soldados, alegam que os garotos não sabiam que seriam acionados para expulsar os próprios familiares e conhecidos.
Procurada, a AGU diz que várias ações já foram realizadas após a audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em abril.
Afirma que, por iniciativa da AGU, o governo assegurou R$ 30 milhões do orçamento da União para investimentos em políticas públicas nas comunidades da região –quantia correspondente à reparação financeira pleiteada pelos quilombolas. Desses, R$ 5 milhões já foram liberados por meio de portaria editada pelo Ministério do Planejamento e Orçamento em favor do Ministério da Igualdade Racial.
Ainda de acordo com a AGU, a disponibilização do restante do valor depende agora de deliberação junto aos quilombolas para que seja definido como e em quais ações os recursos serão investidos. O Ministério da Igualdade Racial conduzirá o diálogo com as comunidades sobre a aplicação dos valores.
Depois de serem remanejadas, algumas famílias receberam valores em dinheiro como indenização. "Não dava para nada. E veio a fome", diz Inaldo, enfatizando que até hoje, apesar de melhorias, as condições de vida seguem precárias.
"As pessoas são pobres, e o Estado se aproveita da situação. Não leva em consideração que precisamos melhorar de vida, como se precisássemos aceitar tudo o que é oferecido só porque não temos nada."
À frente do Mabe (Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara), o quilombola diz ser visto pelo Estado como um inimigo do progresso, mas considera a fama injusta. "Eu sou contra essa política progressista que não inclui o povo", declara. "Sou um alfabetizado funcional batalhando para ver se não sou mais enganado."
Quanto às desculpas pedidas pela AGU na Corte, o quilombola dá de ombros. "É nada por nada. Enquanto não se formalizar, são só palavras."
Além da indenização para os povos afetados, Inaldo afirma que deseja uma reorganização acompanhada de políticas de solução para problemas como insegurança alimentar, ausência de saneamento básico e infraestrutura precária.
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