"O erotismo faz parte da vida cotidiana da gente. Nos meus trabalhos, abordo como algo normal. É dentro de uma perspectiva diária, cotidiana", diz Miriam Alves, 70. A escritora é uma das integrantes da antologia "O Livro Negro dos Sentidos" (Mórula Editorial), uma reunião de poesias e contos eróticos produzidos por mulheres negras de todo o Brasil.
A obra foi feita por 23 autoras de origens e idades intencionalmente diversas, característica pensada desde o momento de idealização do livro.
"Acho importante o livro ter essa diversidade tanto de idades quanto de abordagens da sexualidade. Normalmente ela é vista como sendo pertinente ou pertencente aos jovens, como se só os jovens tivessem o direito de sentir prazer e de ter a sexualidade ativa", diz Miriam.
De estudantes de graduação a doutoras, mulheres desde seus 20 aos 70 anos, dentre elas a escritora Conceição Evaristo e a atriz Cássia Valle, a obra expõe desejos por meio de contos e poemas sem censura, divididos em cinco temas —um para cada sentido do corpo humano: toque, som, sabor, cheiro, olhar.
A escritora baiana Rosane Jovelino diz ver um diferencial no fato de participar da coletânea sendo uma autora quilombola. "No geral, nós enquanto mulheres negras sofremos historicamente todo o processo de um estereótipo. Com essa coisa da objetificação do corpo da mulher negra, e à mulher quilombola não é diferente", afirma.
Os estereótipos atravessam as vidas e trazem a negação da sensualidade, do feminino e ao erótico, diz Rosane.
“Abriu a porta e os braços fortes de Akinse cruzaram em suas costas, encostando-a contra a parede. Não falaram uma só palavra: suas bocas se beijaram com força, beijos úmidos e vorazes e, como abriu a porta seminua, em segundos ele tirou toda a sua roupa e, devagarzinho, iniciou um passeio com a língua em todos os seus cantos. (...)"
"Historicamente, esse lugar foi negado para nós. Ficou muito na mão de outro, sendo falado pela mulher branca, pelo mercado e pelo homem branco. Se permitir estar nessa obra enquanto mulher quilombola é também ocupar esse lugar de fala e me conectar com algo que é extremamente sagrado que é o erótico."
Na coletânea, há quem já estivesse habituada a escrever produções eróticas e quem nunca tivesse se enveredado no gênero até o momento.
Ao longo de 40 anos de carreira, Miriam Alves já transitou entre gêneros textuais e reforça que a sexualidade sempre esteve presente em seus textos de forma natural. Em seu livro "Juntar Pedaços", lançado pela editora Malê, aborda mulheres negras em suas várias perspectivas de vivências, sendo uma delas a sexual.
"Revendo textos antigos, percebi que eu era um pouco saidinha na época, inclusive era vista assim", brinca. "Ouvia de escritoras mais jovens 'nossa, você tinha coragem de abordar esses assuntos naquela época?' Mas você pode falar de sexualidade até com uma gota de chuva na janela. É normal."
Para a atriz Cássia Valle, 52, o convite já representou algo novo. Ela originalmente é autora de livros infanto-juvenis.
"Achei uma provocação. Será que eu vou, será que vai dar certo? Será que sim, será que não? Mas aquilo ficou instigando na cabeça. Foi uma provocação, mas que não foi nem um pouco desconfortável, foi instigante mostrar esse outro lado também, tão mulher e tão nosso", diz.
Sem medo de misturar os públicos, ela destaca que participar de uma obra totalmente fora de sua zona de conforto foi uma forma de não entrar em rótulos.
Escrever sobre sexualidade de mulheres negras oferece o desafio de desviar da fetichização, do machismo e de preconceitos no geral. Mas o objetivo do lançamento foi ignorar os estigmas e mostrar uma retomada do domínio dos próprios desejos, há muito desrespeitados.
"A hipersexualização é o olhar do outro sobre nós e não o nosso sobre a própria sexualidade", afirma a poeta e professora carioca Jurema Araújo, 56. "Com um livro erótico, a gente corria o risco de termos esse medo de nos prender, mas nós não podemos ficar presas a esse estigma."
O direito à própria sexualidade é a principal mensagem que as autoras expressam com a antologia, que tem desde textos mais sugestivos e subliminares até os mais explícitos.
"É engraçado que o homem, quando tem uma vida sexual extremamente ativa, quando ele gosta de seduzir, quando ele se sente bem, transando com várias mulheres, ninguém diz que ele é hipersexualizado", diz Jurema.
As autoras destacam que o olhar da Igreja Católica para o sexo ao longo do tempo também corroborou para a repressão sexual feminina. "Deus criou o grelo para a mulher gozar", brinca Jurema.
O estigma do conservadorismo corroborou para criar uma falsa ideia de que todas religiões se opõem ao sexo, diz Cássia Valle.
"Nós, do candomblé, vemos isso completamente diferente. É o sexo com tesão, por amor, por paixão, tudo isso tem a ver com os próprios orixás. Tem muito amor, tem simplesmente o desejo de liberdade, de se sentir e fazer sentir", explica.
A ideia do livro surgiu quando as escritoras Angélica Ferrarez e Fabiana Pereira assistiram Jurema, que já escrevia poemas eróticos, declamar um poema em um evento do Rio de Janeiro. A partir daí, começaram a curadoria das outras autoras para a obra, e Jurema fez a seleção dos textos.
A sequência dos sentidos no livro acompanha a ordem em que eles são desenvolvidos no corpo, sendo a visão o último deles. Os temas sensoriais ainda são precedidos pela parte de "preliminares" e encerrados com o capítulo "Todos os Sentidos".
"Só tem um sentido que a gente desenvolve após o nascimento. Os outros você começa a desenvolver dentro da barriga mesmo, e aí resolvi trabalhar dessa forma", diz a organizadora.
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