Integrantes do Teatro Oficina mantêm vivo o sonho de criar o Parque do Rio Bixiga, um espaço público com árvores e um córrego a céu aberto em plena região central de São Paulo.
Só tem um problema: o terreno no qual eles pretendem fazer isso pertence ao Grupo Silvio Santos, e faz mais de 40 anos que o apresentador tem outros planos para o local.
Silvio Santos, que já vislumbrou um shopping center por ali, agora quer construir três prédios de uso comercial e residencial. Com 24 a 28 andares, eles chegariam a quase 100 metros de altura cada um e contariam com três subsolos de estacionamento.
Os edifícios nunca viraram realidade devido à oposição do dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, morto no último dia 6 aos 86 anos.
Considerado um dos maiores nomes do teatro brasileiro, Zé Celso, como era conhecido, começou a desafiar o projeto de Silvio Santos em 1980. Com o apoio de intelectuais, artistas e políticos, barrou o empreendimento imobiliário na Justiça e em órgãos de preservação do patrimônio.
"O Zé insistia muito na ideia de que não é uma disputa com o Grupo Silvio Santos. É maior do que isso", diz a poeta e dramaturga Cafira Zoé, ligada à associação do Teatro Oficina.
"É uma disputa urbana, ecológica, contra o avanço de uma especulação imobiliária", afirma. "É uma disputa de modos de existir dentro da cidade", completa Cafira.
O que está em jogo nessa disputa é uma área localizada entre as ruas Jaceguai, Abolição, Japurá e Santo Amaro, no bairro do Bexiga. São 11 mil m2, equivalente a um campo e meio de futebol, ou quase a metade do Parque Augusta.
"Aqui é o último chão de terra livre no centro de São Paulo. É um vazio de especulação urbana, mas ele é fértil, preenchido de muita vida", diz a poeta e dramaturga, em referência aos pássaros e árvores do local.
O vazio nem sempre esteve por lá. Não faz muito tempo, havia pequenos comércios, uma sinagoga e casas da colonização italiana —como a do número 520 da rua Jaceguai, onde a companhia de teatro se instalou na década de 1960 e onde permanece até hoje.
Aos poucos, Silvio Santos comprou quase todos os imóveis em volta do Teatro Oficina e demoliu um por um para formar o terreno amplo e unificado que se vê hoje.
Nesse processo, finalizado ao longo dos anos 2000, os próprios integrantes do Oficina passaram a olhar para aquela área com outros olhos.
"A gente tinha um projeto de futuro para esse terreno, que seria uma universidade antropófaga, um teatro de estádio e uma oficina de florestas. O parque estava nessa via tripla", diz a atriz e diretora Camila Mota.
Na última década, porém, a companhia passou a considerar essa proposta obsoleta: "O próprio espaço já estava se transformando em parque, em área verde", afirma Camila.
O projeto, então, mudou para o atual. Saiu a construção de enormes aparelhos culturais e educativos, entrou a ideia de seguir a topografia do terreno —por exemplo, com um anfiteatro cujos assentos acompanham a inclinação do solo.
A arquiteta cênica Marília Piraju se recorda de uma frase de Zé Celso: "Ele dizia que o teatro não pode responder brutalidade com brutalidade; é preciso imaginar".
O que eles imaginaram inclui o córrego não canalizado, de modo que suas cheias e vazantes ajudem a regular o que é possível fazer dentro do parque a cada estação do ano.
"Foi percorrendo o terreno que começamos a entender o que ele já dava como solução arquitetônica, como solução urbana", diz Marília. "E é importante colocar o teatro como categoria que pensa o espaço público", afirma.
Elas enfatizam esse aspecto público e urbanístico do parque porque, segundo a diretora Camila, há mal-entendidos nessa queda de braço. "Algumas pessoas consideram como se fosse uma privatização da luta pública. Como se fosse algo para o teatro", diz.
Fernanda Taddei, atriz do Oficina, afirma que a discussão vai além do espaço no entorno do teatro.
"Lembro da quantidade de pensadores, artistas e criadores que foram magnetizados por essa questão nesses 40 anos e de quantos momentos isso foi efervescente, no sentido de produção de pensamento urbanístico e arquitetônico", diz.
Durante todo esse tempo, Zé Celso conquistou inúmeras vitórias. Conseguiu, nas esferas municipal, estadual e federal, o tombamento da casa em que fica o Teatro Oficina. Em 2020, viu a Câmara Municipal aprovar um projeto de lei para instalar o Parque Municipal Bixiga. Dois anos depois, obteve na Justiça decisão contrária à construção dos prédios.
Mas não foram vitórias definitivas. O projeto de lei acabou vetado pela prefeitura; a sentença judicial foi derrubada em segunda instância; e todos os órgãos de preservação do patrimônio já deram aval aos edifícios.
As obras não começaram porque a disputa não terminou na Justiça e, principalmente, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento ainda analisa os projetos para os empreendimentos em volta do Oficina.
Sem a autorização da prefeitura, o plano de Silvio Santos continuará bloqueado —e, sem um acordo com o apresentador, a criação do Parque do Rio Bixiga tampouco sairá do papel. O grupo empresarial não respondeu a perguntas da reportagem, mas pessoas próximas à família dizem que não há nenhuma intenção de ceder o terreno.
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