A gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) está fazendo um "censo" dos frequentadores da cracolândia para separar moradores de rua, dependentes químicos e traficantes e, depois, levar os usuários de drogas da Santa Ifigênia para o Bom Retiro. Por enquanto, não foi definido quando a transferência ocorrerá.
Na manhã desta quarta (19), o governador afirmou que ainda não há uma estratégia pronta para fazer a migração dos usuários, muito menos certeza de que a ideia terá sucesso. Ele falou sobre os planos para a cracolândia em uma cerimônia de entrega de uma reforma na Polícia Técnico-Científica, no Butantã, zona oeste da capital, e estava acompanhado do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite.
À noite, passadas algumas horas das declarações acerca do plano, usuários atearam fogo em materiais recicláveis e fizeram uma barricada na esquina da rua dos Gusmões com a avenida Rio Branco, endereço da cracolândia há cerca de três semanas. Um trecho da avenida precisou ser interditado.
Até o momento, a Polícia Civil já cadastrou cerca de 200 dependentes que frequentam a região da cracolândia. Os registros são feitos pelos próprios policiais, que fotografam e anotam os dados dos usuários abordados durante operações. A maioria dos cadastrados apresenta passagem por furto, roubo, tráfico de drogas, entre outros crimes, segundo as investigações.
Imagens feitas por câmeras e drones têm sido usadas pelos policiais para identificar o movimento do tráfico de drogas na cracolândia. Os criminosos recorrem a barracas e guarda-sóis para esconder a venda e consumo de crack da vigilância policial.
O governo estadual pretende levar os dependentes químicos para as imediações do Complexo Prates, no Bom Retiro, a cerca de 2 km da rua dos Gusmões. O equipamento da prefeitura reúne um Caps (Centro de Atenção Psicossocial) para viciados em álcool e outras drogas, três abrigos, uma AMA (Assistência Médica Ambulatorial) e um centro de convivência.
Há cerca de dez dias, houve uma tentativa de realocar os usuários para o Bom Retiro, mais especificamente para o espaço embaixo do viaduto Orestes Quércia, conhecido como Estaiadinha. Mas a estratégia falhou. Os dependentes voltaram para a Santa Ifigênia menos de 24 horas depois.
Procurada na ocasião, a administração do prefeito Ricardo Nunes (MDB) negou qualquer envolvimento da gestão municipal na tentativa de deslocamento e disse que se tratou de uma dinâmica própria da cracolândia.
Questionado sobre o assunto na manhã desta quarta (19), após a declaração de Tarcísio acerca do projeto de remover a cracolândia da região da Santa Ifigênia, Nunes reiterou a posição. Ele afirmou não ter sido informado da intenção do governo estadual de levar o fluxo da cracolândia para o entorno do Complexo Prates.
O assunto, de acordo com Nunes, não foi discutido em nenhuma das reuniões periódicas entre governo estadual e prefeitura sobre a cracolândia. "Não foi falado comigo", afirmou o prefeito. "O que entendo é que o governo do estado deva ter falado de fazer não a remoção da cracolândia, mas talvez fazer um direcionamento para atendimento público."
Segundo Tarcísio, a intenção é que o "censo" dos frequentadores ajude não só na separação de traficantes e usuários, que seriam levados para o novo endereço, mas também em outras medidas. O governo quer que pessoas com famílias em outras cidades paulistas e de outros estados sejam levadas de volta para casa. Os familiares serão procurados com base na pesquisa no fluxo.
"Aos poucos, vamos fazer esse movimento. A gente tem que ter paciência, tem efeito colateral, o pessoal vai querer voltar, vai ter balbúrdia. Vamos ter que organizar, ter que ocupar e não deixar o pessoal [da cracolândia] voltar", afirmou o governador.
Tarcísio retratou o perfilamento da cracolândia como uma iniciativa inédita, com a intenção de que a abordagem seja individualizada. De acordo com ele, a medida pode, por exemplo, identificar pessoas que estejam em progressão de pena no sistema penitenciário, que possam ser internadas voluntariamente ou até compulsoriamente.
O governo estadual tem discutido com o Judiciário e o Ministério Público uma estratégia para internar compulsoriamente usuários com dependência química grave e cujos parentes não seja possível encontrar. Isso, segundo Tarcísio, ocorreria "para aqueles que não têm outra opção". "Tenho que cuidar da vida dessa pessoa e pode ser que eu tenha sucesso lá na frente", afirmou.
O secretário Guilherme Derrite disse que a estratégia de mudança de endereço da cracolândia pressupõe uma separação dos fornecedores da droga e dos usuários. Uma operação na semana passada, segundo ele, prendeu 16 pessoas, entre as quais dois homens apontados como lideranças do tráfico na região de Campos Elíseos e Santa Ifigênia.
Poucas horas após o anúncio de Tarcísio, moradores do Bom Retiro criaram um abaixo-assinado online contra a mudança. No início da noite desta quarta, havia cerca de 3.600 assinaturas.
Entre a manhã e tarde desta quarta, a reportagem esteve na rua Prates, onde fica o Complexo Prates. Há escolas, hotéis, restaurantes, templos religiosos e bazares nas proximidades do complexo. Perto dali, na rua Afonso Pena, está localizado um grande conjunto de edifícios residenciais.
Nas calçadas que margeiam o complexo, foi possível visualizar cerca 30 sem-teto. Nenhum deles consumia crack. Um outro vizinho do complexo é a sede do Denarc (delegacia de narcóticos).
A ideia da chegada da cracolândia assusta funcionários de uma escola localizada a três quadras do abrigo. A unidade tem 600 alunos.
A diretora da Luminova Bom Retiro, Luciana Monte, 38, teme pelo trajeto a ser feito por pais e alunos até o colégio, aberto em 2019. "Vai ser complicado. Os pais não vão ter a segurança de deixar os filhos. Torna-se um tanto perigoso, mais do que já é."
Antes das férias de julho, ao menos dois jovens do ensino médio foram atacados com faca e golpe mata-leão enquanto caminhavam da estação da Luz até o estabelecimento de ensino, relatou Monte.
Para a funcionária de um hotel, que preferiu não ser identificada, a eventual migração a rua Prates deve provocar a falência do estabelecimento, que recebe turistas de diversos estados atraídos pela grande variedade de lojas de roupas, principalmente nas ruas José Paulino e da Graça.
O engenheiro Felipe Santos, 36, é síndico de um condomínio na rua Afonso Pena que reúne 270 apartamentos. Seu principal temor é que o bairro sofra com a desvalorização e com os mesmos problemas vistos na região da praça Princesa Isabel, onde comércios fecharam devido à dispersão dos usuários de drogas em 2022. "Não queremos que o Bom Retiro vire os Campos Elíseos."
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