Em um povoado montanhoso no sertão do Brasil colônia, ocupado de maneira vertiginosa, aonde chegava gente aos borbotões movida pela sede incurável do ouro, uma escravizada africana viveu momentos dramáticos. Francisca Mina, assim ela passou a se chamar aqui, depois de traficada no início do século 18. Seu nome trazia embutido uma dose adicional de violência.
"Francisca" fora atribuído no batismo, provavelmente na Bahia, e o sobrenome "Mina" carimbava nas pessoas escravizadas o porto de sua procedência, deixado para sempre do outro lado do Atlântico.
A Costa da Mina (atuais Benim, Togo e sudoeste da Nigéria) era então a principal zona de fornecimento de cativos para Minas Gerais. Os minas não formavam um grupo étnico, era antes uma designação que englobava grandes culturas.
Na época, disseminou-se a ideia de que os africanos dessa região eram hábeis mineradores. Eles tinham, porém, outro atributo menos atraente aos olhos das autoridades: revoltavam-se com frequência incomum. Às vezes nem esperavam desembarcar para reagir. Na ilha de Itaparica, na Bahia, em 1704, 50 africanos e africanas vindos da Costa da Mina tomaram o navio e fugiram por terra. Em Minas Gerais, os minas apareceram cedo, tramando um levante na região do Ribeirão do Carmo (hoje Mariana), em 1711.
Não havia apenas escravizados insatisfeitos nesse lugar turbulento do império colonial português, no qual aconteceram 250 rebeliões de todos os tipos no século 18. Francisca Mina esteve em um desses eventos extremos quando, em 1720, eclodiu a Sedição de Vila Rica (antiga Ouro Preto) ou Revolta de Filipe dos Santos.
Passando a limpo a administração da região que produzia sete toneladas de ouro por ano, o governador Conde de Assumar reavivou descontentamentos.
Ao tentar melhorar a arrecadação do quinto do ouro (imposto cobrado pela coroa portuguesa de 20% sobre o total de ouro arrecadado), anunciando a instalação de Casas de Fundição, a fúria coletiva estalou em fins de junho nas principais vilas da capitania de São Paulo e Minas do Ouro e em dezenas de pequenos arraiais, com ataques a residências e edifícios públicos, destituição de autoridades, circulação de pasquins e conflitos armados ao longo de três semanas.
A hidra da rebelião tinha muitas cabeças: potentados, frades, grandes comerciantes e mineradores. Dos morros que cercam Vila Rica, desceram parte dos 7.000 escravizados do núcleo, 60% deles oriundos da Costa da Mina. O português Filipe dos Santos, de 42 anos, se juntou a essa máquina de guerra, liderando a multidão nos momentos decisivos, gritando palavras de ordem: "Viva o povo!".
Até aquele momento, o minerador vinha pavimentando seus planos de ascensão social, instalando-se em Antônio Dias, um dos principais bairros da vila, alfabetizando-se e acumulando bens e créditos. Cultivava ainda uma boa aparência em público, vestindo-se com decoro: peruca de tranças e roupas finas.
Com sua cativa Francisca Mina, eles formavam um casal típico gerado pela violência da escravidão. Partilhavam a casa na qual havia toalha de mesa, rede, um par de travesseiros e lençol. Viviam de "portas adentro", expressão usada para as frequentes uniões consensuais entre homens brancos e suas escravas, algumas tratadas com tanto zelo que escandalizavam a igreja local.
Para as cativas, este era, muitas vezes, um caminho para a alforria. O guarda-roupa de Francisca incluía saia de seda com ramos encarnados e casaca de veludo forrada, além de outras peças de seda com fios dourados e estampas coloridas.
Um dos episódios mais marcantes da Revolta de Vila Rica ajuda a entender o papel dessa mulher. Em meados de junho, após os soldados Dragões prenderem vários líderes, Filipe dos Santos escapou rumo à cachoeira do Campo, área próxima da capital que concentrava 3.000 escravizados e havia sido palco de potenciais sublevações escravas encabeçadas pelos minas.
Ali foi preso no dia 17 de julho ao lado de 40 escravizados armados colhendo apoio para a rebelião. Naquele momento, Filipe urdia uma rara aliança entre escravizados africanos e luso-brasileiros para tomar o controle político da região, graças aos laços de solidariedade de sua companheira com a população "mina".
Alguns dias depois, a cabeça do companheiro de Chica estaria espetada em Vila Rica e partes de seu corpo jaziam espalhadas pelos núcleos rebeldes.
Nossa protagonista não teve melhor sorte: depois de anunciada em um leilão, "a negra Francisca Mina" (como os documentos se referem a ela) foi comprada à vista, junto com os trastes confiscados de Filipe. Um incêndio, ordenado pelo governador, deixou calcinado o Morro do Ouro Podre, local hoje conhecido por Morro da Queimada.
Mulheres e homens rebeldes como Francisca Mina raramente aparecem em detalhes nos documentos. Nem por isso devem permanecer ocultos.
Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil
O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.
A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.
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