Capela dos Aflitos, na Liberdade, vai ganhar novo restauro

Igreja ligada à história negra do bairro tem problemas estruturais; fiéis reivindicam reforma há anos

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São Paulo

Herança da história negra e indígena do centro de São Paulo, a Capela dos Aflitos, na Liberdade, vai ganhar um novo restauro. Reivindicada há anos pela comunidade que frequenta a igreja, a reforma foi aprovada pelos órgãos estadual e municipal do patrimônio histórico.

A construção é o que sobrou do Cemitério dos Aflitos, a primeira necrópole pública da cidade de São Paulo, inaugurada em 1774. Destinado ao sepultamento de indigentes, escravizados e indígenas, o local foi desativado em 1858 com a inauguração do cemitério da Consolação e teve seu terreno loteado.

Erguida em taipa de pilão e revestida posteriormente com tijolos e concreto armado, a capela foi tombada em 1978, mas tem uma série de problemas estruturais.

Foto colorida mostra capela branca, pequena, com toldo e gradil de ferro na entrada, atrás de postes em formato de lanternas japonesas. A capela tem uma torre com sino
Fachada frontal da Capela dos Aflitos, no Bairro da Liberdade, região central da cidade. Igreja vai ganhar novo restauro - Karime Xavier/Folhapress


O altar carece de pintura e a escadaria que leva até o sino foi corroída por cupins. A porta onde devotos colocam bilhetinhos para agradecer a Chaguinhas, um santo negro popular, está desgastada pela infiltração que vem do teto. O forro tem marcas de mofo. As paredes têm rachaduras, além de tinta descascada.

Segundo os fiéis, a capela foi alvo de um incêndio em 1994 e ficou por anos sem reparação. Um projeto de restauro foi aprovado em 2011, mas nunca foi executado.

O novo projeto prevê a reforma de toda a parte elétrica e de iluminação da igreja, que ganhará também sistemas de proteção contra incêndios e contra descargas elétricas na torre. O velário será reconstruído.

O gradil de ferro que circula a capela será substituído por placas de vidro. "A fachada será completamente restaurada e será mais livre, assim como a do Pátio do Colégio", diz Igor Carollo, arquiteto que elaborou o projeto de restauro para a Arquidiocese.

A movimentação dos fiéis pelo restauro começou em 2018, após a demolição de um sobrado ao lado da capela fazer com que novas rachaduras aparecessem na igreja.

Os frequentadores fundaram então uma associação, batizada de Unamca, ou União dos Amigos da Capela dos Aflitos, para pressionar os órgãos do patrimônio histórico, a prefeitura e a Cúria pelo restauro.


A obra no terreno ao lado daria lugar a um centro comercial, mas tinha irregularidades, que foram denunciadas pela Unamca. Como o lugar fazia parte de uma área de interesse arqueológico do município, o Codephaat (estadual) e o Conpresp (municipal) exigiram a prospecção do solo.

A escavação revelou ossadas de nove indivíduos, duas delas com materiais ligados a religiões de matriz africanas, principalmente ao culto a Ogum. Com isso, a área foi cadastrada pelo Iphan (órgão federal do patrimônio histórico) como sítio arqueológico.

Após pressão do movimento negro, o então prefeito Bruno Covas sancionou em janeiro de 2020 uma lei que prevê no terreno a criação de um memorial que resgata a história dos negros e negras que viveram na Liberdade durante o período da escravidão. Como parte do processo de criação desse memorial, o terreno foi desapropriado pela Justiça em setembro.

"Restaurar a capela é resgatar a memória dos excluídos", afirma Eliz Alves, 58, técnica de contabilidade aposentada que coordena a Unamca. O movimento pela reforma do templo foi para ela também um exercício de fé.

Católica, Alves frequenta a capela desde quando era criança e é devota de Nossa Senhora dos Aflitos. Se agarrou à santa quando teve que operar o filho por conta de uma hérnia, quando ele não tinha dois meses de vida. "Prometi a ela que sempre divulgaria seu nome", diz.

Os pedidos de saúde também são ouvidos por Chaguinhas, afirma Emilia Ribeiro, 71, aposentada. "Tudo o que eu peço ele atende", diz. Ministra da capela, ela se emociona ao falar da aprovação do restauro.

O professor da rede municipal de ensino Wesley de Souza Vieira, 42, a técnica de informática aposentada Eliz Alves, 59, e as ministras da Capela dos Aflitos, Áurea Maria Neves, 68 e Emília Ribeiro, 71, que são membros da Unamca - Karime Ribeiro/Folhapress


Chaguinhas, como era conhecido Francisco José das Chagas, foi um militar negro condenado à morte em 1821 por ter liderado um motim em Santos pelo pagamento de salários. No ano da Independência, foi levado ao Largo da Forca, onde hoje fica a praça da Liberdade.

Segundo relatos registrados pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, a corda que mataria Chaguinhas arrebentou duas vezes. O público que assistia à execução pediu clemência às autoridades, acreditando que a salvação seria obra divina.

O pedido foi negado e Chaguinhas morreu na terceira tentativa de enforcamento. Embora não tenha sido canonizado, o ex-militar é dito milagreiro e sua história tem se popularizado. No Carnaval deste ano em São Paulo, Chaguinhas foi homenageado pelo samba-enredo da escola Mocidade Unida da Mooca, como o "santo negro da Liberdade".

Além da capela e do cemitério, funcionavam ali o pelourinho, o quartel, o fórum, a casa de pólvora e a cadeia. "Eram aparatos de uso da lei, da crueldade do Estado, da violência. Equipamentos que você quer esconder, né?", diz Ana Barone, professora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde coordena o Laboratório de Estudos de Raça e Espaço Urbano, LabRaça.

Os traços dessa violência foram, aos poucos, sendo apagados com a urbanização do bairro, diz Barone.
Para a pesquisadora, o restauro da capela recupera a memória dessa violência e dos cultos religiosos dos negros que viveram no bairro, além de ser um contraponto à "etnização" japonesa da Liberdade, simbolizada pela mudança no nome da estação de metrô para Japão-Liberdade, em 2018.

Os devotos aguardam ainda a divulgação pela Cúria da data de início das obras. Na semana passada, a Prefeitura divulgou o vencedor do concurso para o projeto do Memorial dos Aflitos, que terá um de seus acessos ligado a capela.

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