A trajetória do monsenhor Jonas Abib, que morreu aos 85 anos nesta segunda-feira (12), pode ser vista como um microcosmo das grandes transformações que o catolicismo brasileiro sofreu a partir da segunda metade do século passado. Trata-se de um percurso complexo, que mistura inovação e conservadorismo, tremenda vitalidade e uma constante ameaça de declínio.
A iniciativa mais importante da carreira de Abib foi a fundação da Comunidade Canção Nova no vale do Paraíba, São Paulo, em 1978. Se o projeto do sacerdote tivesse sido formulado na Idade Média, talvez ele fosse lembrado hoje como mais um dos muitos fundadores de ordens religiosas da Igreja Católica, como as dos beneditinos e franciscanos.
Mas, ao chamar um pequeno grupo de jovens da região para levarem uma vida em comum segundo os preceitos cristãos, Abib levou em conta as transformações que estavam acontecendo no catolicismo a partir do Concílio Vaticano 2º (realizado entre 1962 e 1965). O concílio, que reuniu teólogos eminentes e todas as principais autoridades da Igreja, buscou adequar a atuação católica ao mundo moderno, com ênfase numa maior participação dos leigos (os fiéis comuns, sem função sacerdotal) e no estímulo a uma nova onda de evangelização, em especial por meio do emprego dos meios de comunicação de massa.
Foi basicamente essa a receita aplicada com afinco por Abib e seus colaboradores. A comunidade fundada por ele, de início com apenas um punhado de membros, foi se transformando numa espécie de pequena cidade à parte, na qual conviviam, em tempo integral, tanto sacerdotes quanto leigos celibatários, jovens casais e, mais tarde, seus filhos. "É o modelo de vida dos primeiros cristãos", disse-me ele quando visitei a Canção Nova em 2003, quando a comunidade já tinha se transformado numa potência midiática.
De fato, a segunda peça do quebra-cabeças foi a construção de uma estrutura de comunicação popular especificamente católica, primeiro com emissoras de rádio, depois com a TV e, cada vez mais, pela internet. É um modus operandi que seria adotado por diversas outras organizações católicas no país, como a Rede Século 21, também do interior paulista. Financiadas basicamente por doações de fiéis e venda de produtos, elas ajudaram a criar um ecossistema midiático próprio, com uma programação variada, mas que nunca se afasta totalmente dos temas religiosos, e capaz de produzir seus próprios astros, em especial no ramo da música. Abib, aliás, tinha desenvoltura como compositor, sendo autor de músicas sacras populares como "Tu Me Conheces" e "Vem, Maria, vem", ainda executadas em paróquias de todo o Brasil.
O terceiro e igualmente importante elemento da atuação de Abib à frente da Canção Nova foi a identificação com o grande movimento da Renovação Carismática, provavelmente a mais importante influência sobre o catolicismo popular brasileiro nas últimas décadas. Em termos teológicos e comportamentais, a Renovação Carismática tem muito em comum com o pentecostalismo evangélico, tendo nascido, inclusive, em contextos nos quais católicos e evangélicos americanos se reuniam para orar juntos.
Enfatizando a ação direta do Espírito Santo, a espontaneidade na oração e no canto e uma relação pessoal do fiel com Jesus, a abordagem carismática parecia talhada para energizar a experiência religiosa católica em tempos nos quais a Igreja deixava de ser a única opção possível para os cristãos brasileiros, com o crescimento das denominações cristãs evangélicas.
O paradoxo é que esse caminho mostrou, ao mesmo tempo: 1) o enorme dinamismo da fé católica no Brasil, com o crescimento da Canção Nova e de iniciativas similares, tanto em audiência a distância quanto no público de grandes eventos; 2) e os limites de tal abordagem, com a continuidade da queda no número de pessoas que se declaram católicas no país.
Tal como no caso das denominações evangélicas, os grupos influenciados pela Renovação Carismática optaram pelo conservadorismo em questões doutrinárias e de comportamento, uma postura que parece ter se intensificado com o aumento da polarização política e a ascensão do bolsonarismo. Sobre Bolsonaro, Abib chegou a dizer que "o Brasil tem o presidente que precisava ter". Trata-se de mais um elemento ambíguo e conflituoso desse legado.
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