Quando a recifense Joelma Andrade, cujo filho foi morto pela polícia, ouviu o veredicto do juiz, gritou para o júri popular: “O cano estourado teve conserto!”.
Era a resposta a um funcionário do governo de Pernambuco que, dois anos antes, havia comparado o assassinato de seu filho Mário, 14, a um problema em um cano de rua.
Ao levar às autoridades três mil assinaturas de pessoas que cobravam punição aos responsáveis, Joelma, 39, ouviu: “A senhora quer que a gente faça o quê? Imagine se fosse dar resultado em todos os canos estourados da cidade”.
O jovem foi morto por um policial embriagado em julho de 2016 no Ibura, bairro onde morava. O autor do crime, Luiz Fernando Borges, foi expulso da corporação e condenado a 28 anos e 6 meses de prisão.
O julgamento foi no dia 6 de novembro de 2018. Duas semanas depois, no Dia da Consciência Negra, Joelma fez a primeira ação do que viria a ser o Centro Comunitário Mário Andrade.
Por todo o Brasil, mães que perderam seus filhos para a violência policial se organizam em busca de justiça. Em ao menos nove estados, de quatro regiões, há registros desses movimentos. Os grupos oferecem ajuda psicológica a familiares, convocam atos de rua e cobram respostas das autoridades.
No Rio de Janeiro, o Movimento Mães de Manguinhos, fundado pela pedagoga Ana Paula Oliveira, 44, e Fátima Pinho, 47, já se tornou famoso na favela. As duas tiveram seus filhos mortos pela polícia.
Em 2014, Johnatha de Oliveira, filho de Ana Paula, foi atingido nas costas durante uma ronda, aos 19 anos. O policial Alessandro Marcelino de Souza, acusado de matar o jovem, irá a júri popular, mas a data ainda não foi marcada.
Paulo Roberto, filho de Fátima Pinho, tinha 18 anos quando foi espancado até a morte por 15 policiais. Cinco foram condenados em 2019.
O estado do Rio de Janeiro foi, em 2020, o líder em número absoluto de mortes por intervenções policiais, segundo o 15º anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O grupo de Manguinhos organiza protestos e cria programas para mães e familiares. Em parceria com o Napave (Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado), também oferece acolhimento a moradoras do bairro e de favelas do entorno, como o Jacarezinho.
A pedagoga Ana Paula Oliveira afirma que o movimento costuma dar apoio a mães durante os julgamentos dos homicídios.
“Acolhemos, encaminhamos, mas, acima de tudo, damos formação política, para que essas mulheres entendam que não existe bala perdida e que os nossos filhos não morreram por acaso.”
Como resposta, a Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio de Janeiro afirma que as ações da polícia “priorizam sempre a preservação de vidas, tanto dos agentes quanto dos cidadãos, e os confrontos só existem quando os policiais têm de reagir à ação de criminosos”.
No Ceará, Edna Carla Souza, 49, foi uma das fundadoras do coletivo Mães do Curió. Com o grupo, ela começou lutando por justiça, depois de perder o filho Alef, morto aos 17 anos, na chacina do Curió. No episódio, ocorrido em 2015, foram assassinadas 11 pessoas, adolescentes na maioria. A investigação indicou envolvimento de 45 policiais militares.
Em 2017, Edna foi ao município de Redenção, a 63 km da capital cearense, para ajudar uma mãe que, como ela, perdera seu filho para a violência policial. Desde então, foi reunindo outras mães e, em dezembro do ano passado, fundou o coletivo Mães da Periferia de Vítima por Violência Policial do Estado do Ceará.
O grupo engloba o Mães do Curió e outros movimentos, como o Mães da Redenção e Mães do Chorozinho.
Esse último inclui Leidiane Fernandes, 33, que teve o filho de 13 anos, Mizael, morto em uma ação policial enquanto dormia na casa dos tios.
“Tivemos que levantar uma bandeira estadual, porque a polícia continua matando. Infelizmente, temos só 11 mães no movimento, e há muito mais para incluir, mas umas não participam porque não querem ou não se sentem seguras. A polícia e o Estado matam nossos filhos e deixam nossa cova aberta.”
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará informa que as ocorrências são apuradas com instauração de inquérito policial pela Polícia Civil e submetidas à apreciação do Ministério Público do Estado do Ceará. E que oferece aprimoramento para os agentes públicos e acolhimento às famílias.
Edna explica que muitas mulheres desenvolvem depressão após a perda. É o caso de Sandra Sales, 46, integrante do grupo cearense Mães da Periferia e da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado.
Oito anos após a perda da filha Ingryd, aos 19, Sandra passou a ter pressão alta e depressão. Sofreu dois infartos. Ela diz que só consegue sobreviver, criar a neta e lutar porque toma 11 medicamentos.
Em outubro de 2020, foi absolvido o policial que, em 2013, atirou em Ingryd —quando a moça trabalhava em uma festa. Sandra afirma que vai buscar justiça internacional para mostrar que “os mortos têm voz”.
Ana Paula e Fátima, de Manguinhos, conhecem casos de mães que perderam filhos, adoeceram e morreram. Janaína, que era uma das integrantes do grupo, morreu depois de desenvolver um quadro de depressão. Joselita de Souza, mãe de Roberto, um dos jovens mortos na chacina de Costa Barros, na zona norte do Rio, entrou em depressão e morreu por parada cardiorrespiratória, oito meses após o crime.
A chacina de Costa Barros ocorreu em novembro de 2015. Cinco jovens saíram para comemorar o primeiro emprego de um deles quando o carro em que estavam foi alvejado por 111 tiros disparados por policiais militares. Todos os que estavam dentro do veículo morreram. Três agentes foram condenados.
A psicóloga Lívia Arrelias, 42, explica que no caso dessas mães, o processo de luto é ainda mais difícil, porque elas não se permitem parar, sentem necessidade de trabalhar pela punição dos responsáveis, o que colabora para o adoecimento.
Mestre em teoria e pesquisa do comportamento pela Universidade Federal do Pará, a psicóloga afirma que a violência policial é legalizada pelo próprio Estado e que seu efeito é muito mais cruel quando as mães das vítimas são mulheres negras.
“O fato de mulheres pretas serem tachadas como mulheres fortes exige muito de seus corpos. Elas perdem os filhos e se juntam a outras nessa mesma situação. Em algum momento, elas vão cair.”
Segundo dados do Anuário de Segurança Pública, em 2020, pessoas negras representaram 78,9% das vítimas de intervenção policial, e 68,8% tinham de 18 a 29 anos.
Os estados com maior taxa de mortos por ações dos agentes de segurança foram Amapá, Goiás, Sergipe, Bahia e Rio de Janeiro.
Em São Paulo, o Mães de Maio, um dos movimentos de mães mais conhecidos do país, surgiu em 2006, após confrontos entre a polícia e o PCC, que resultaram na morte de mais de 500 pessoas.
O movimento foi criado por Débora Maria da Silva, 62, que teve seu filho, Edson Rogério, assassinado aos 29 anos por um policial, horas depois de ir à casa da mãe.
Débora diz que, nesses 15 anos de articulação das Mães de Maio, ela fez protestos, acompanhou outros episódios de violência e ajudou mães de várias partes do Brasil.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo afirma que as polícias têm um compromisso com a vida e que todas as mortes provocadas por ações policiais são analisadas e investigadas pelas instituições. O órgão informa, também, que todas as mortes ocorridas em maio de 2006 foram acompanhadas pelo Ministério Público e reportadas à Justiça.
Débora atuou como pesquisadora no relatório “Violência de Estado no Brasil: uma análise dos Crimes de Maio de 2006”, com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Elaborado em parceria com a Universidade de Oxford (Reino Unido), o documento, de 2019, analisou 60 casos de pessoas assassinadas na região da Baixada Santista naquele período, a fim de entender o perfil das vítimas e identificar indícios de execução sumária.
Ao completar dez anos de existência, o Mães de Maio promoveu um encontro com mulheres de movimentos do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Goiás e até da Argentina. Daí surgiu a Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado.
Inspirada por Débora, Eronilde da Silva, 43, decidiu
fundar, em 2018, o Mães de Maio do Cerrado, em Goiás. Seu companheiro, Pedro Nascimento Silva, fora morto
13 anos antes, aos 24, pela Polícia Militar, durante a Operação Triunfo —uma ação de
reintegração de posse na ocupação Sonho Real, no bairro Parque Oeste Industrial, em Goiânia.
Eronilde diz que, depois da sua perda, encontrou forças em contato com outros familiares de vítimas.
Para Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os movimentos organizados pelas mães são importantes porque muitos desses casos continuam sem resposta.
Bueno chama a atenção para o fato de que os grupos são formados, em sua maioria, por mulheres negras e periféricas que veem seus filhos morrerem de maneira repentina.
Terine Hussek, pesquisadora do Instituto Igarapé, centro de estudos sobre segurança, afirma que as ações da polícia são feitas em territórios racializados, contra uma população mais vulnerável.
Nessas incursões, os policiais que mais morrem são os de postos inferiores, como os praças, grupo com maior número de pessoas negras, afirma a pesquisadora.
Há necessidade de treinamento em direitos humanos para superar a violência contra pessoas negras, segundo Elizeu Soares Lopes, ouvidor da Polícia de São Paulo.
Em Pernambuco, a Secretaria de Defesa Social afirma que mortes por intervenção policial englobam confrontos com criminosos em operações de repressão ao narcotráfico, legítima defesa e situações em que há imprudência, imperícia ou dolo por parte do servidor público. Cada morte, segundo o órgão, é investigada com rigor.
A recifense Joelma Andrade afirma que, mesmo sem previsão de mudança no panorama, insistirá em dar dedicação integral ao centro comunitário com o nome de seu filho. Hoje, segundo ela, o grupo ajuda mais de 500 famílias com cesta básica e produtos de limpeza, e dá oficinas e cursos profissionalizantes para adolescentes.
A líder comunitária, que se reconheceu como negra e militante só depois da morte de Mário, explica que o espaço virou também um local de luta contra o genocídio negro. “O centro é um quilombo, existe para acolher e dar assistência.”
Passados cinco anos da morte do filho, Joelma anuncia que adotará duas gêmeas, filhas de uma mulher dependente química. “Todo o amor que tenho pelo meu filho morto, darei a elas. É o Mário voltando para casa.”
As meninas ainda não nasceram, mas já têm os nomes escolhidos. Uma se chamará Mariana, em homenagem a Mário. A outra, Marielle, como a vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em março de 2018.
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