Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Wilson Gomes
Descrição de chapéu Chuvas no Sul

Onde houver crise haverá fake news e propaganda suja

No Brasil, estamos vendo esse jogo ser jogado desde 2018

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Muitos estão surpresos e indignados com a nova inundação de fake news que se seguiu à tragédia decorrente das chuvas no Rio Grande do Sul. Têm razão na sua indignação, mas não deveriam estar surpresos. O "novo normal", como se diz por aí, é ubi crisis, ibi fake news.

O latim é de brincadeira, mas expressa um fato verdadeiro: onde houver crise —situações em que surgem grandes incertezas e angústias quanto ao presente e ao futuro comum do país e das pessoas— vai haver fake news.

Vemos esse jogo sendo jogado no Brasil desde 2018. Se a crise for política, fake news aparecerão para aumentar o sentimento de incerteza, crispar os ânimos e recrutar militantes e eleitores pelo medo e pelo ódio. Se for de saúde pública, fake news surgirão como uma infecção oportunista em um corpo social já debilitado a fim de disseminar mais confusão, aflição e medo, convenientemente aproveitados para fins políticos.

Por que diante de uma tragédia natural não teríamos também uma onda de disseminação de falsas informações a explorar as angústias, as desconfianças e a polarização já instaladas e faturar politicamente com isso?

As facções políticas estão nesses dias empenhadas em vender a ideia de que Lula ou Eduardo Leite são culpados pela crise ou não estão interessados em minorar os seus efeitos. Ou que a população civil gaúcha está ao deus-dará, contando apenas com as próprias forças na ausência do Estado e suas instituições. Ou ainda que as doações de voluntários não chegam ao destino por inépcia ou má-fé das autoridades. O contexto é a única novidade aqui, a atitude e o roteiro são bem conhecidos.

Essa simbiose entre informação maliciosa e crises já tinha sido fartamente documentada desde quando a primeira ainda não se chamava fake news e atendia pelo prosaico nome de boataria. Não é à toa que os primeiros estudos de psicologia e sociologia do boato são de 1935, no contexto de um terremoto na Índia; a segunda leva de estudos, que tornou a boataria um objeto acadêmico relevante, aconteceu durante a 2ª Guerra Mundial.

Confusão, incerteza e ambiguidade, dizem os especialistas, são a condição necessária para que boatos possam prosperar socialmente; mas como a boataria se alimenta delas, trabalham para que se mantenham constantes e perdurem.

Na ilustração, um labirinto de paredes não muito altas, o piso verde e as paredes amarelas. Ë um labirinto daqueles utilizados em laboratórios para testar a inteligências de roedores, e que está meio submergido na inundação de  águas cinzentas e esverdeadas. No local de “escape” do labirinto, um rato amarelo alaranjado, se destaca. Ele atravessou desde a entrada até o ponto de escape, indo reto, carcomendo as paredes que tinha na frente. O rato olha fixamente e tentando pegar a “representação” de um pedaço de queijo, de grande tamanho, feito de linhas finas que marcam seu contorno, e que flutua no ar. Como se fosse o seu pensamento sobre o que está observando, o ilustrador desenha um balão de historias em quadrinhos, e dentro dele um apetitoso pedaço de queijo bem real, de cor amarelo intenso, com seus buracos característicos.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 14 de maio de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Fake news são os boatos da era digital. São, portanto, mensagens com alcance, velocidade de disseminação e capilaridade jamais vistos. Mas são também um recurso importante para esta forma de propaganda que está mais forte do que nunca: a propaganda suja.

Trata-se de um tipo de comunicação estratégica, digital e inescrupulosa, cuja meta é dirigir a opinião, formar e orientar os humores e sentimentos da sociedade, influenciar atitudes e comportamento. São o pão de cada dia de forças políticas radicais, desestabilizadoras, altamente empenhadas em se impor rapidamente no sistema político.

E que não se importam de manipular a opinião pública ou educar os que os seguem com mentiras, parcialidades, distorções e meias-verdades. Tudo pode ser usado, até a verdade, desde que atenda aos propósitos da propaganda: construir um adversário, mobilizar o ódio contra ele, criar uma identidade de grupo por contraste ao inimigo, desmoralizar e promover a desagregação do antagonista.

Fake news, teorias da conspiração, opinião política enviesada, informações de fontes partidárias e até reportagens produzidas pelo jornalismo de qualidade, tudo serve às necessidades da guerrilha de comunicação digital em que se disputa a condução das massas em períodos de crises sociais, morais e políticas. Esses boatos, com diferentes níveis de falsificação e fraude, são amalgamados com relatos plausíveis para preencher as necessidades que grupos políticos têm de levar as pessoas a pensar, imaginar, temer e acreditar em determinadas coisas.

Por isso é tão complicado quando se espera restaurar uma comunicação justa e íntegra isolando as falsificações do conjunto da comunicação política, ou simplesmente mandando-se a polícia contra fake news. Não sou contra minimizar danos ou punir grandes falsários e traficantes de falsa informação, mas é realista admitir que, por mais pesado que seja o braço da Justiça e mais efetiva que seja a refutação das falsas notícias, isso não tem impedido que a propaganda digital inescrupulosa prospere e que novas ondas de fake news surjam na próxima crise.

Talvez fake news e a guerrilha de informação sejam uma condição inevitável nas novas sociedades digitais. Não é destino ou determinismo, mas é importante manter esperanças ajustadas à realidade.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.