Querido diário, tudo começou numa quinta-feira de junho como um teatro da revolução, mas já com piche e fogo. Se pode ter uma revolução em curso em Ancara e Istambul, por que não em São Paulo?
Um aumento de R$ 0,20 na tarifa, um conjunto de militantes ligados à esquerda, mas negando isso até sob tortura, e o jogo estava pronto.
Quem diria que 20 anos depois dos caras-pintadas ainda veríamos a garotada nas ruas fazendo protestos. Esta geração nos devia o seu batismo de fogo, acreditam comovidos tiozinhos de esquerda.
Foi lindo os ver assim tão revolucionários. Num dia, são manifestantes na praça Tahrir, embora a locação seja a avenida Paulista. Na sexta, dia 7, um pouco mais animados, brincam de "London rioters" para os lados da estação Dom Pedro 2°. Na terça, 11, o tema é Primavera Árabe, que a coisa está ficando séria e mais fortes são os poderes do povo: um foguinho aqui, uma pichação acolá, uma depredação mais adiante e pronto. Outro dia, mais calmo, era capaz de rolar alguma Occupy Wall Street lá para as bandas da Faria Lima.
Querido diário, pelo discurso do governador Alckmin durante a semana, estimulado pela reação de "não tem ninguém para colocar ordem nesta cidade" registrada nos editorais dos jornais paulistanos do dia 13, via-se que ele estava pronto para dar aos meninos da "Facebook revolution" tudo de que precisavam para se consagrar como "protesters", "rebels" e "insurgents": uma repressãozinha à moda Hosni Mubarak.
Ficamos combinados assim: Geraldo põe a roupinha de Erdogan e os meninos levam o que falta para fazer uma praça Taksim.
Diário querido, na noite de quinta, 13, a Polícia de Choque barbarizou contra os "vândalos" (sic). Bombas choveram, gás lacrimogêneo e sprays voaram sem parcimônia, balas de borrachas foram disparadas sem critério. Erro grotesco: bala de borracha nos olhos de jornalista muda o enquadramento de qualquer cobertura.
As fotos do dia seguinte, de lufadas de gás de pimenta na cara de quem foi assistir ao evento e de uma jornalista com o rosto ensanguentado, correram o mundo. Exemplos de passantes, manifestantes pacíficos e repórteres sobre a brutalidade policial viraram o jogo.
A polícia de choque transformou um protesto banal em uma manifestação de massa cercada de amor e compreensão decorrentes das fantasias do nosso romantismo político. Algo a ver com nossas crenças profundas em democracia direta, generosidade coletiva, sonhos de jovens mudando o mundo, coisas assim.
Querido diário, na ressaca depois da carga da polícia paulistana foi aberto o concurso "interprete o que você está vendo", do qual participam inclusive as pessoas diretamente envolvidas. Os meninos do MPL, que vivem dando sonoras e publicando colunas nestes dias, estão em plena luta para segurar a interpretação.
Juram sobre o que é mais sagrado que é pela revogação do aumento dos preços das passagens de ônibus, mas quem disse que ainda têm a propriedade do movimento? Cartazes de "não é por R$ 0,20" correm de mão em mão.
Nem me venham dizer que o sujeito que acha que os protestos são o "início do fim da década petralha", como acabei de ler no Twitter, esteja parasitando a mobilização enquanto o outro que diz que "é lindo ver a juventude lutando por direitos, pelo socialismo e por um mundo melhor" representa a autenticidade.
Não estão ambos na rua e nas redes? Um acha que está lá contra a corrupção, outro porque aprendeu com a mídia que o culpado de tudo são os políticos e outro, ainda, para dizer à mídia que a culpa é dela.
Diário querido, os jornais de hoje, dia 18, falam dos "vândalos que se aproveitaram" das manifestações de ontem. Tudo isso para separá-los do cerne dos protestos que, noves fora os hooligans, seria ordeiro, pacífico e mais meia dúzia de adjetivos edificantes. O fato é que a coisa tem ficado mais feroz. Sem Tropa de Choque e com o amor das arquibancadas digitais, as multidões partiram para invadir, queimar, bater.
Compreendo que os jornais e jornalistas estejam cheio de cuidados para não "criminalizar" os protestos —seja por amor genuíno e crenças profundas, seja para diminuir a hostilidade contra os repórteres e equipes nas ruas que se tem visto nestas semanas.
Mas dá mesmo para separar a galera que quebra e invade dos que adotam uma atitude conduzida por amor cívico e devoção democrática? Menininhas empunhando cartazes com "eu saí do Facebook" são mais representativas disso que está rolando do que o pit bull que toda noite fantasia estar tomando a Bastilha?
Querido diário, isso não vai acabar bem.
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