O bolsonarismo radical agoniza. Perdeu a eleição presidencial, não tem o golpe e parece não ter plano B.
O próprio presidente, guru e referência máxima do movimento, já não governa pelas vias normais do controle do Executivo nem pelas vias alternativas instituídas nos últimos anos, a saber, a política como espetáculo em cartaz diário na esfera pública. Não há mais lives das quintas, não há mais o palco cotidiano do cercadinho do Alvorada, não há mais o fluxo constante de disparates, insultos e loucuras praticados sob medida para deixar repugnados os democratas e ocupada e distraída a atenção pública.
Contra toda a razoabilidade, porém, parece que Bolsonaro acreditava que a sua reeleição não apenas era factualmente provável como decorreria por necessidade cósmica, era seu destino. Com a derrota, sobreveio a incredulidade, a relutância em aceitar a perda, a depressão, o desaparecimento. Como o José do poema, está sem discurso, e tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou, Jair e agora?
O bolsonarismo agonizante, contudo, não é menos perigoso que o bolsonarismo triunfante. Estão ainda com Bolsonaro, para o que der e vier, apenas os que estariam no bunker de Hitler quando a derrota era certa e iminente: os íntimos, os sem alternativa, os fiéis. São capazes de tudo, pois não lhes parece haver vida após Bolsonaro e a simples ideia de um Brasil sem ele na Presidência lhes parece um cenário insuportável.
São os bolsonaristas de abraçar quartel, o pentecostal-golpismo, o agro ogro de fechar rodovias, queimar caminhões e invadir casas legislativas, os milicianos e militares prontos a qualquer loucura, os insufladores digitais que fizeram da radicalização política seu modelo de negócios. Como os comensais do último repasto do Führerbunker ou os últimos crentes da seita suicida, sobraram na recusa à derrota acontecida e na esperança de uma virada radical de mesa os bolsonaristas radicalizados e fanatizados.
A sua mais vistosa característica é que encerraram as negociações com a realidade. Refugiaram-se em um mundo à parte, em que são da ordem do dia as convicções delirantes de que as eleições foram fraudadas, de que o Brasil está sob uma ditadura e, finalmente, de que o destino do país só se cumprirá se o Messias continuar reinando sobre nós.
Quaisquer discursos ou evidências que desafiem a tríplice crença serão liminarmente dispensados, assim como será ignorada qualquer informação cognitivamente dissonante do Credo dos Bolsonaristas dos Últimos Dias. Estão fora do alcance da razão.
Claro, há outros bolsonarismos. Principalmente o mais promissor de todos, aquele que, institucionalizado em um número vultoso de mandatos em todo o país, pode representar politicamente a cara de um Brasil ultraconservador, de extrema direita, alérgico ao Iluminismo, aos direitos e garantias fundamentais e ao humanismo.
A energia que os sustenta, contudo, não parece provir de alguma espécie de "Brasil profundo", sombrio e regressivo, onde deitaria organicamente raízes, mas da Presidência da República, do seu mito instalado no centro do poder político nacional. Findo o reinado, cessa a magia. Quem será o seu farol?
Literalmente decapitado, abre-se ao bolsonarismo ordinário pelo menos três alternativas. Continuará coeso e imenso a partir de alguma outra base, seja esta as igrejas evangélicas conservadoras, o agro mais feroz, as forças bem-armadas civis e militares ou as franjas cada vez mais ideologicamente desgarradas da democracia liberal, radicalizadas, antissociais e ferozes?
Será mitigado e absorvido de volta nos corpos orgânicos de onde emergiu com o advento do bolsonarismo, isto é, nas igrejas, nos organismos de classe patronal, nos partidos fisiológicos de direita, no submundo da deep web e da direita radical internacional?
Ou, finalmente, irá se fragmentar nas suas várias agendas de origem —reacionarismo, conservadorismo de direita, elitismo radical, ultraliberalismo darwinista, filofascismo— retornando ao estágio pré-2015, quando começaram a convergir no bolsonarismo?
Naturalmente, nessas minhas hipóteses descarto a sobrevida do bolsonarismo por meio da força bruta ou o golpe como alternativa. Não por uma convicção ingênua de que os Bolsonaro e os bolsonaristas radicalizados não o desejem ou não trabalhem para isso, mas por acreditar na enorme força de reação do campo democrático brasileiro, que arregaçou as mangas para arrancar do bolsonarismo uma vitória eleitoral que, afinal, esteve bem próxima em outubro.
Mas também por crer na resistência ativa da opinião pública, do bom jornalismo, de boa parte do Congresso e, sobretudo, do Judiciário. O TSE, o STF e Alexandre de Moraes, em particular, é importante ressaltar, têm até agora mostrado que a lei é o osso duro de roer em que mesmo o golpismo surdo e cego pode, eventualmente, quebrar os dentes.
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