![vladimir safatle](http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15152396.jpeg)
� professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.
Quem protege as crian�as dos protetores?
Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
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H� algo de sintom�tico no uso estrat�gico do tema da "prote��o da inf�ncia" no interior do embate pol�tico brasileiro recente. N�o foram poucas as a��es feitas tendo vista a pretensa necessidade de proteger as crian�as da sexualidade presente na vida social.
De onde se seguem mobiliza��es de toda natureza visando preservar a inf�ncia, como se os contatos com a sexualidade fossem imediatamente convites ao abuso, � redu��o do outro � condi��o de mero objeto. Como se a sexualidade fosse irremediavelmente ligada � viol�ncia e a formas de desrespeito social.
Mas poder�amos nos perguntar se �, de fato, desej�vel proteger as crian�as; n�o seria melhor, ao contr�rio, proteger as crian�as de seus pretensos protetores?
Pois notemos, inicialmente, como a transforma��o da inf�ncia em um espa�o livre da sexualidade � simplesmente imposs�vel e profundamente indesej�vel.
As sociedades disciplinam desejos, definem padr�es sexuais de conduta desde a mais tenra idade. Basta nascer para estar exposto � sexualidade do outro, �s suas fantasias e narrativas. A voz da m�e, o olhar do pai, o toque dos irm�o j� est�o carregados de sexualidade.
Mas n�o estamos expostos apenas ao outro mais pr�ximo, como os membros da fam�lia, Estamos expostos tamb�m ao Outro como sistema social de normas. Normas sociais, institui��es das mais variadas formas, como igreja, escola, fam�lia, empresa, f�brica, campo: todas lidam com a tentativa de disciplinar o que h� de mais indeterminado e m�vel em n�s, a saber, nosso v�nculo afetivo e corporal com outros.
Esse sempre foi o real problema com a dimens�o do sexual: ela n�o tem forma clara, n�o tem limites definidos, colocando-nos sempre diante de algo que parece for�ar nossas identidades em outras dire��es.
Por isto, podemos dizer que aqueles que querem proteger crian�as est�o, normalmente, � procura de constituir uma hegemonia que se passa por lei da natureza. Eles querem continuar a ditar, para nossas crian�as, o que sexualidade deve ser e como ela deve ser vivida, impedindo que essas mesmas crian�as desenvolvam a capacidade de lidar e responder � complexidade que as experi�ncia sexuais produzem.
Estes que querem proteger crian�as sempre as "protegeram", o que n�o as impediu de produzir as mais diversas neuroses e formas de sofrimentos. O tema do abuso �, ao menos neste contexto, apenas um pretexto para tentar defender-se contra a circula��o da sexualidade.
N�o se trata de ignorar o n�mero brutal de abusos sexuais contra menores, assim como a necessidade de lutar contra eles, mas simplesmente de lembrar que n�o se combate abusos e viol�ncias retirando a sexualidade da esfera p�blica e social.
Combate-se, primeiro, levando pessoas a verem que abusos e viol�ncia nada tem a ver com a afirma��o da sexualidade, pois se tratam de fen�menos de ordem completamente diferente. Desejo e brutalidade n�o andam juntos, assim como tamb�m n�o andam juntos desejo e posse (o que, em uma sociedade como a nossa, parece contraintuitivo, e isso talvez seja o que h� de mais urgente a ser modificado). Essa distin��o � importante para levar pessoas a se colocarem mais claramente contra a viol�ncia coercitiva.
Segundo, combate-se o abuso levando pessoas a conseguirem lidar com a despossess�o e a desapropria��o de si que as rela��es sexuais muitas vezes provocam, ou seja, levando-as a n�o compreenderem toda despossess�o como um abuso.
Sempre haver� uma dimens�o desreguladora e confusa nas rela��es de desejo e melhor seria se estiv�ssemos conscientes disso. Como dizia Freud, melhor ensinar �s crian�as n�o nossos pretensos ideais, mas os car�teres contradit�rios e complexos da experi�ncia social, permitindo-as desenvolver modalidades singulares de formas de a��o e respostas a tais complexidades.
Nesse sentido, seria melhor uma sociedade na qual as crian�as n�o est�o "protegidas", mas onde elas t�m a possibilidade de desenvolver capacidades singulares para lidar com o que, verdade seja dita, ningu�m sabe como lidar, j� que n�o somos n�s que lidamos com a sexualidade. Talvez seja melhor dizer: � a sexualidade que lida conosco, e muitas vezes sem que n�s sequer saibamos.
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