� professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.
'Esperando Godot' � o exemplo mais bem acabado de um teatro realista
Marcelo Cipis/ Editoria de Arte/Folhapress | ||
Quando "Esperando Godot", de Samuel Beckett, foi encenada pela primeira vez em Paris, Jean Anouilh escreveu: "Uma adapta��o para music hall dos 'Pens�es' de Pascal, interpretados pelos clowns de Fratellini".
A descri��o parecia ao menos ter o m�rito da confiss�o de desnorteio diante do choque. No entanto, ela acabava por iluminar algo que, de fato, fornecia um eixo de entrada nesta pe�a de Beckett que retorna agora �s livrarias brasileiras (e que tempo melhor para retornar do que exatamente agora?) em uma edi��o e tradu��o cuidadosas de F�bio de Souza Andrade (Companhia das Letras, 185 p�gs.).
O lugar imposs�vel que "Esperando Godot" ocupava, entre um music hall e os mundos em desabamento dos "Pens�es", de Pascal, trazia as marcas de uma decis�o. N�o haveria nada mais equivocado do que sublinhar o pretenso car�ter "absurdo" do teatro de Beckett nesta hist�ria da espera de Vladimir e Estragon por algu�m que nunca vir�.
Para ser "absurdo", ele deveria estar longe do real, o que n�o � o caso. "Esperando Godot" � o exemplo mais bem acabado de um teatro realista n�o apenas por expor o car�ter atualmente arruinado da linguagem que socialmente se imp�e a n�s.
Uma linguagem que s� por meio da mais brutal viol�ncia pode nos fazer ainda confiar nas rela��es de causalidade, na certeza produzida pelo efeito que segue a causa, na recogni��o produzida pela mem�ria, na continuidade narrativa com sua orienta��o de a��o pelas no��es de necessidade e desenvolvimento.
Ou seja, ele n�o � realista apenas por denunciar a falsidade do acordo em torno de uma metaf�sica que pulsa na gram�tica de nossa linguagem ordin�ria. "Esperando Godot" � realista porque exp�e o tipo de desabamento que ocorre quando o real se torna poss�vel. � realista por descrever como se respira pela primeira vez.
Em dado momento da pe�a, Vladimir e Estragon entabulam um di�logo. "Vamos tratar de conversar com calma, j� que calados n�o conseguimos ficar", diz Estragon. Segue-se ent�o a tentativa de uma conversa meio reflexiva, meio filos�fica sobre folhas mortas. Ela termina sem muito sucesso, o que leva Vladimir a pedir angustiado que eles digam alguma coisa, o que est� longe de ser f�cil agora.
No que se segue um di�logo sintom�tico entre os dois. Diz Vladimir: "S� temos que recome�ar"/ "�, n�o parece muito complicado", diz Estragon/ Vladimir: "O primeiro passo � o mais dif�cil"/ Estragon: "Podemos come�ar de qualquer parte"/ Vladimir: "Podemos, mas temos que decidir"/ Estragon: "� mesmo".
De fato, o primeiro passo � sempre o mais dif�cil quando se descobre que podemos come�ar de qualquer parte. Mas que maneira melhor de mostrar que se pode come�ar de qualquer parte do que fazer como Beckett e colocar em circula��o a brutalidade de um humor que zomba de toda espera e de toda hermen�utica, que faz tro�a de toda forma de garantia de orienta��o da conduta?
Humor que mostra a desorienta��o do senso comum diante do desabamento de todo um mundo.
Mas talvez fosse o caso de meditar sobre exatamente isso, a saber, o que pode significar ver a forma do mundo desabar com humor? N�o com desespero, j� que, na pe�a, at� mesmo a tentativa de se enforcar termina em um n�mero de clown no qual a corda arrebenta e as cal�am caem.
Na verdade, trata-se de ver o mundo desabar com humor, o que n�o poderia ser outra coisa que a express�o de uma estranha confian�a que anima n�o exatamente os personagens de Beckett, mas sua escrita.
A confian�a de que, no meio do que aparece para n�s como caos (mas um caos que n�o � apenas o fantasma que criamos para alimentar a nostalgia da ordem; ao contr�rio, caos que � a libera��o da experi�ncia em rela��o a suas formas pr�vias), aparece tamb�m sempre a primeira respira��o.
Por isso, depois de descobrir que podemos come�ar de qualquer parte, ainda � necess�rio decidir. Isso, os personagens de "Esperando Godot" n�o fazem. Pois eles est�o presos em uma espera que � apenas certa forma de defesa. Mas porque Beckett nunca de fato se desesperou com uma decis�o, porque a decis�o j� estava sempre l�, seu humor � a forma suprema de quem diz: "S� mais um esfor�o, pois ou�am como j� se respira no caos".
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