![vladimir safatle](http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15152396.jpeg)
� professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.
Definidor de nossa �poca, ato de falar de si mesmo tem seu pre�o
Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
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Um dos dispositivos fundamentais de defini��o do horizonte da �poca a qual pertencemos est� vinculado ao advento de um tipo muito espec�fico de fala. Para n�s, talvez ela seja a mais natural de todas as falas. No entanto foi necess�ria uma brutal modifica��o em nossas formas de vida para que tal fala emergisse e, principalmente, para que ela ganhasse tamanha import�ncia. Trata-se do que entendemos por "falar de si".
De fato, a ideia de que h� uma fala que � fala sobre mim mesmo, fala que revela a singularidade de meu lugar e do tempo da minha experi�ncia � uma de nossas mais influentes inven��es.
Gregos e romanos, por exemplo, falavam na primeira pessoa, mas n�o exatamente com o intuito de falar de si, como Rousseau, apenas para ficar em um caso, falar� s�culos depois de si mesmo em suas "Confiss�es" a fim de, antes de mais nada, falar para si mesmo, ou seja, dar � err�ncia da sua vida a forma de algo que possa ser apropriado por si mesmo. Gregos e romanos falavam na primeira pessoa para fornecer exemplos de um caso geral a ser assumido por outros.
Nosso v�nculo ao ato de "falar de si" tornou-se t�o forte que chegamos a acreditar que ele poderia nos curar de nossos males.
Algo do advento da psican�lise, por exemplo, parece estar radicalmente vinculado a essa opera��o. Se ela foi uma pr�tica t�o influente entre n�s a ponto de transformar nossa cultura em uma "cultura psicanal�tica" foi, entre outras coisas, por ter compreendido como as sociedades ocidentais estavam vinculadas � cren�a de que muitas vezes sofremos por n�o sabermos como falar de n�s mesmos. Como se as experi�ncias das quais somos sujeitos exigissem s�nteses que apenas uma fala na qual constru�mos um romance pessoal seria capaz de realizar.
Arist�teles costumava dizer que o que separa a fic��o da vida ordin�ria � a exist�ncia de um come�o, de um meio e de um fim. Como se a fic��o desse ordem � vida, fornecendo-lhe uma racionalidade, na medida em que define formas de liga��o, de sucess�o, de coexist�ncia, de hierarquia entre acontecimentos. A falta deste romance, dessa fic��o parece, ao menos para n�s, impedir o ato de reflex�o, dessa reflex�o que aproximaria os momentos esquecidos em uma rememora��o extensa, que tece uma rede de causalidades convergentes que revelariam o que realmente queremos e procuramos realizar, muitas vezes sem o saber.
S� que a psican�lise traz tamb�m um outra ideia, distinta dessa no��o hegem�nica de que falar de si �, como os gregos diziam, um "pharmakos". Pois n�o seriam as in�meras formas do "falar de si" uma conforma��o a um padr�o de fala, com suas pressuposi��es de maturidade e ordem, em vez de uma express�o? Poder�amos come�ar por nos perguntar: em que condi��es somos reconhecidos como capazes de falar de n�s mesmos, de relatar nossos atos em uma linguagem "correta"?
N�o seria uma fonte de sofrimento a imposi��o de falar de n�s mesmos em situa��es nas quais certamente seria necess�rio algo outro, por exemplo, falar n�o de si, mas dos objetos que nos causam e afetam, como se fosse poss�vel assumir a fala dos objetos?
Pois somente um idealismo que confunde percep��o com del�rio projetivo nos faria acreditar que nossa fala � simplesmente nossa, e n�o o resultado da maneira com que os objetos ressoam, resultado da maneira com que eles n�o se submetem a n�s, quebrando a regularidade de nossas narrativas, marcando espa�os sem unidade.
Ou seria sempre del�rio psic�tico falar n�o de n�s, mas falar como outros que n�o conhecemos e n�o fomos? Pois h� momentos em que falar de outros, falar com a voz de outros, � a �nica fala verdadeira, por indicar o que est� em movimento de se tornar algo distinto.
H� a voz das coisas e dos objetos, h� a voz de outros em n�s. Essas vozes s�o uma universalidade no interior de todo corpo singular. No entanto h� aqueles que preferem continuar a falar de si mesmos ou, principalmente, falar como si mesmos. � uma escolha poss�vel, � verdade. Ela tem seu pre�o.
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