![vladimir safatle](http://f.i.uol.com.br/folha/colunas/images/15152396.jpeg)
� professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.
Descobrir outras formas de gozo pode quebrar nossos tabus e dogmas
Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
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"Nosso futuro de mercados comuns encontrar� sua balan�a na extens�o cada vez mais dura dos processos de segrega��o." Esta � uma frase do psicanalista franc�s Jacques Lacan escrita em 1967, quando a exist�ncia de grandes mercados comuns ainda era apenas algo mais pr�ximo de uma promessa.
No fundo, a frase lembrava que est�vamos no interior de um processo de desenvolvimento social e econ�mico que n�o caminhava em dire��o � amplia��o das rela��es � diferen�a, assim como � amplia��o dos horizontes de experi�ncia social, como muitos gostariam de acreditar. Na verdade, e isso Lacan dizia em 67, nosso destino era ver, de forma cada vez mais dura, processos de segrega��o aparecerem novamente.
Essa era sua forma de dizer que nossas sociedades capitalistas construiriam um espa�o comum que tinha como contrapartida necess�ria a alimenta��o cont�nua de certa forma de viol�ncia.
N�o porque essa segrega��o seria a rea��o contra um modelo de espa�o comum incapaz de levar em conta a liga��o "natural" das pessoas a territ�rios, a costumes e a particularidades de suas pr�prias hist�rias. Como se fosse quest�o de acreditar que o desenvolvimento inexor�vel da modernidade capitalista global produzisse rea��es regressivas de comunidades refrat�rias a nossa toler�ncia liberal.
Na verdade, a ideia era que nossa estrutura de mercados comuns necessitava dessas segrega��es, ela produzia tais arca�smos. Pois ela precisava construir uma dicotomia, uma ideia de que haveria apenas duas posi��es poss�veis: ou nossa forma de toler�ncia ou um espa�o de arca�smos que era continuamente alimentado. Ou nossa modernidade ou a regress�o que parece, muitas vezes, vir dos rinc�es mais rec�nditos, dos espa�os mais esquecidos.
S� que Lacan insistia ainda em outra coisa, que hoje � mais do que atual. O eixo dessas segrega��es n�o eram apenas diferen�as culturais de toda sorte, religiosas, raciais e outras. O que nos era imposs�vel de aceitar, seja no interior da toler�ncia dos mercados comuns, seja na forma da intoler�ncia de suas segrega��es, era que um outro tivesse outro modo de gozo.
Ou seja, no fundo, deixar ao outro seu modo de gozo era algo insuport�vel em nossas sociedades. Pois gozar de outra forma significa descobrir algu�m que ignora nossos tabus, dogmas e separa��es, que torna poss�vel rela��es que para n�s s�o imposs�veis. Por isso, a simples exist�ncia de outro gozo significar� sempre a confirma��o de que nossa forma de ser � contingente, de que ela poderia ser radicalmente outra. Para muitos, um outro gozo ser� assim sempre um desrespeito.
Mas parece ent�o que h� um problema de avalia��o aqui. Afinal, nossas sociedades de mercado comum n�o procuram exatamente integrar a diversidade, dar espa�o � pluralidade? N�o � isso que parecemos ver? Notem, no entanto, uma coincid�ncia expressiva, dentre tantas outras coincid�ncias expressivas.
Foi exatamente no mesmo momento em que tal "integra��o da diversidade" se transformou em pol�tica multicultural de Estado que essas mesmas sociedades come�aram um processo brutal de patologiza��o de comportamentos, de constru��o de categoriais cl�nicas de descri��o de patologias cada vez mais extensas, de tipifica��o cada vez maior de condutas sexuais. Nunca a psiquiatria foi t�o normativa quanto hoje.
Como se a integra��o dessa diversidade tivesse um pre�o, o de nos afastar da diferen�a efetiva. Pois a diferen�a efetiva tem uma caracter�stica perturbadora: ela nos � interna, ela nos implica. De certa forma, ela nos � pr�xima. A verdadeira diferen�a � algo insuportavelmente pr�ximo, t�o pr�ximo cujo contato pode nos mudar, pode nos contagiar, modificando nossa dire��o, produzindo em n�s metamorfoses.
Aceitar a diferen�a nada tem a ver com tolerar o outro. Tem a ver com compreender qu�o fr�gil e mutante � a narrativa que temos de n�s mesmos. Por isso, expor outras formas de gozo ser� sempre uma opera��o prestes a produzir colapsos nos espa�os de "celebra��o da diversidade". Agora, vai tentar explicar isso a uma associa��o criminosa com endere�o fixo e CNPJ chamada "banco".
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